sábado, julho 31, 2004

eu e tu

Eu sou vida, tu és morte.
Eu sou fé, tu descrença,
soro de água, seiva seca.
Eu o sol, tu a noite,
a liberdade, o cárcere,
a esperança, o desalento,
a promessa, a desilusão.
Eu o teu oposto,
imagem e verso,
ponto, reticência,
doce, amargo,
alegre, descontente...
Eu a popa, tu a ré,
o futuro, o passado,
a paixão, o medo,
a coragem, a cobardia,
o rochedo, a ventania.
eu notícia, tu segredo,
improviso, sabedoria,
eu bastet, tu ...

quinta-feira, julho 29, 2004

de uma filha

Sou, no solo estéril, a força da vida. Cresci de dentro de ti, e soltei alto um grito. Hoje transcendo-me transcendendo-te, voando para além do que és e foste.
Sou a imagem que desenhaste, o suporte, mas também o sacrifício. Sou aquela que verás como sempre viste, a que criaste e largaste com amor em liberdade.
Sou a que moldaste e deixaste ganhar cor, aprendendo a verdade nos dias de mentira.
Sou a que queria ser diferente seguindo os teus passos, enchendo de brios e risos a tua face.
Sou aquela de que falaste e adivinhaste o futuro, pelo passo, pela mão e pela arte. Sou a que depois de ti te lembrará, perpetuando, pela noite dos tempos, o teu nome de mãe.

terça-feira, julho 27, 2004

melancolia


Imenso o coração em que cabe,
fantástica, a escala da melancolia,
como vento emergente do passado,
ao corpo dá-lhe o lado,
faz-se guia...

Em sussurro de silêncio...
engrandece o nada de vazio
toma o corpo, o pensamento,
esculpe em pedra o sentimento,
dá-lhe forma, tira vida...

Muda companheira,
ensurdece e cala os sentidos,
embala, adormece,
enleva os anseios em carinhos...

Prende o tempo diminuto,
rasga, faz pedaços, horizonte,
difusos os contornos faz precisos
tomam alma, ganham nome!

Trá-los uma e outra vez
ao nosso espelho
redefine a imagem, a visão,
somos nós mas já não somos, 
o que fomos é real e ilusão!


patchwork

 Sou a manta de retalhos retalhada, toda feita de retalhos tristemente coloridos pela força do calor de uns Invernos.
Sou a manta que se põe e que se guarda, que acolhe e que se esquece...
Sou talhada de pedaços bem distintos, pelas mãos que me cerziram sonhos e destinos tão diversos, que já nem sei que fins, que meios, que começos.
Sou a manta que te tapa, se perdido, também tu em mim te perdes, se procuras em mim esse conforto, em que dormes e te aqueces.
Sou essa manta de retalhos escolhidos, de pedaços de tecido alinhavada, que se perde e se acha noutro dia, noutra cama estendida e resguardada.

segunda-feira, julho 26, 2004

cada bico sua sentença


A pata da pata Aquilina encontrava-se presa. Uma daquelas cruéis armadilhas feitas por cruéis pré-adolescentes cerrara-se com precisão entre as suas membranas. Já havia algum tempo que Aquilina, impossibilitada de chorar, clamava “quás” o mais alto que podia. Perante o alvitre, acercou-se um grupo de patos  dispostos a discutir e quem sabe a resolver o problema. O pato Patacôncio de bico laranja, saído de fresco da reunião magna da Patolândia, perguntava os dados pessoais de Aquilina.
Aquilina, em desespero de causa, questionava-se sobre o sentido de tanta pergunta e informação: “O que interessa saberes quem sou? Tira-me mas é daqui!” – Avisado e algo ofendido, Patacôncio preparava-se para uma longa explicação acerca das vantagens e obrigatoriedade de recolherem a sua ficha para o cadastro da Patolândia.
O pato de bico vermelho, Curvacho de seu nome, visivelmente perturbado com a situação, clamava  a bom som que iria bicar os responsáveis. Enquanto aquele procurava adeptos para o movimento de revolta recém formado, Calimero, por seu turno, juntava as asas em jeito de prece e padecia, solidário, por Aquilina. Já o bico roxo de Calimero ia na terceira salve patinha quando chegou o Alfaçório.
- Amigos este é o resultado de uma política ambiental e cultural inexistentes. Aquilina é uma vítima do sistema. Que o meu bico verde mude de cor se ainda hoje não faço um manifesto! Abaixo as armadilhas e a cultura alimentar humana que oprime os patos!
Curvacho e Alfaçório recolheram atrás de uma moita traçando planos.
Neste entretanto, Aquilina atónita com o que a rodeava, resolveu pedir ajuda a uma raposa que ali passava. Mal por mal, pensava com as suas penas, mesmo que me coma sempre ponho fim ao meu sofrimento.
Calimero meditava agora sobre a propriedade e  legitimidade da eutanásia. Pobre Aquilina que iria arder na pira dos patos suicidas...
A raposa, verdadeiramente confundida com a situação, chegou perto de Aquilina e esta sussurrou-lhe algo ao ouvido. Pouco depois, Aquilina rejubilava com a liberdade devolvida e fugia a bom fugir.
A raposa demorou-se mais um pouco enquanto terminava a sua lauta refeição avícola...
Moral da História: Mais vale o perigo de te comerem que a neura de nada fazerem!

apocalipse

"Ouvi uma voz forte que saía do santuário e que dizia aos sete anjos: Derramem na terra as sete taças da ira de Deus".
Já se avolumavam à porta do castelo cavaleiros virtuosos e aduladores experimentados. João, que perdera o Graal entre os delírios, chamava pelo Rei dos Pescadores. As plumas dos elmos coloriam o céu vermelho quase até à nuvem reluzente onde estava o Rei. O seu reino era um ermo que a ninguém servia e a velha pergunta perdera-se entre as ruelas como lenda esquecida. A quem servia o Graal? No abandono da espiritualidade pela senda do poder, da excitação e da novidade, a falta de prudência revelara-se veneno mortal.
Aquela era a ferida comum. Na escolha do caminho amplo do facilitismo entendiam agora a voz que tonitruante soava sobre as suas cabeças. Pela taça perdida e pelo perdido gosto de saborear a sua procura, herdaram raivas e depressões. O fosso que os separava do castelo, dividia a espiritualidade da racionalidade, a abundância da escassez, a dádiva do recebimento.
- O meu nome é João e beberei as taças da ira!
-Como diz?
-Perdi o Graal dentro de mim, beberei as sete taças da ira para que não se derramem sobre o ermo deste reino. Para que a ferida se cure e voltemos ao Paraíso.
Estupefactos, os caval(h)eiros de fato e gravata, entreolhavam-se. Já não era a primeira vez que alguém se passava na fila da Caixa Geral de Depósitos.

domingo, julho 25, 2004

uma carta escrita

Sabes, para a semana vou de férias. Estou dividida entre este espaço que pouco habito diariamente e outro que supostamente me fará descansar. Estou dividida entre o que levo e o que fica. Fazer opções, definir prioridades, simplificar, o processo anual da gestão do tempo e do dinheiro que se repete agora no fazer das malas. Queria levar algum passado comigo e pouco ou nenhum presente. Queria levar as roupas dos meus vinte anos e o corpo que as usava, queria levar os meus pais e irmãos para que tomassem conta de mim e brincassem comigo. Mas não. Levo-me a mim e levo a minha filha.
Perguntas-te a esta hora porque te escrevo. O porquê de uma carta tradicional, com envelope, selo de correios e tudo. Olha, dei-me conta que à porta do meu prédio tenho um receptáculo de contas, da luz, da água e do telefone. Já não tenho uma caixinha mágica com uma chave pequenina e engraçada que guardava cartas de amor e amigos. Lembrei-me dos envelopes obesos que a minha prima Armanda me mandava, com fotografias de revista e novidades de namoricos em festas de garagem. Lembrei-me das cartas do namorado que estudava em Coimbra, depois do outro que estudava no Porto. Creio que namorava com eles porque era por carta. Essas cartas que eu guardava debaixo do papel que forrava a gaveta da roupa interior e que pela noite, depois do pai se deitar, lia e relia para me alimentarem os sonhos.
É por isto que te escrevo, porque o tempo de escrever me parece esquecido, porque o tempo em que se trocavam cartas me parece distante e doce. Escrevo-te minha amiga para te dizer que tenho saudades, saudades tuas e minhas. Saudades.

sexta-feira, julho 23, 2004

pacote de açúcar nicola



Um populista sem o voto popular,
uma vitória com um segundo lugar,
um ministro da defesa e dos assuntos do mar,
uma "pasta" trocada para quem a agarrar,
ponham lá Portugal a pensar!


e quando


E quando o passado
se mistura, se intromete,
como vizinha na janela,
à espreita.
Devolve em catadupa
o bom, o mau, aleatório,
de forma pronta e bruta.
E quando o presente se escoa,
nos canais intermináveis
do talvez.
E quando te recordo
e não vejo o que lembrar
como a vizinha alteada
que na janela se debruça
sem saber o que espreitar!
Quando não há razão
na memória,
nem sentido na procura,
e não queremos que nos digam:
- E agora?
E quando a vizinha desinteressada,
da janela para a cozinha
se apressa no jantar,
enquanto ela faz o refogado,
percebemos ter passado
a razão de recordar

a outra

Esculpira o corpo à semelhança do seu. Observando os detalhes pareciam-lhe perfeitos, a acentuada curvatura dorsal, o pescoço longo, os seios pequenos, molde exacto. Já havia horas que se prostrara em atenta observação quase à desfocagem e logo à fusão. Ao toque, a pedra fria quase reagia como viva por instantes. No colo, pendia uma "echárpe" de seda quase translúcida. Quando o vento soprava, adensava-se no ar o aroma a sândalo do seu perfume favorito, este era o toque derradeiro.
Virou-se e partiu.
À noite, junto à estátua, esta nota: "Querido, sei que não sentirás a diferença".


quinta-feira, julho 22, 2004

ensaio do adeus


A vida é um ensaio do adeus, uma preparação constante para a partida. Não vale a pena munirmo-nos de nada nem tão pouco nos despojarmos de tudo, porque é indiferente. É indiferente o rumo, a estadia. Na tentativa de ludibriarmos esta verdade, encontramos sentido na razoabilidade de condutas, fé na causa-efeito das acções e da salvação. Por vezes, a medo da vida, alguns encontram refúgio na morte, invertendo a lógica das premissas porque é a vida o único refúgio da morte. Esta é o sentido por si só e em si só.
Aqueles que assim interiorizaram vivem sem regras ou no excesso da sua estatuição e do seu cumprimento, ou por as acharem absurdas e irrelevantes ou por, contrariamente, serem a única referência palpável que lhes resta.
A vida é um ensaio do adeus, um ensaio para o desconhecido ou, mais fria e agnosticamente, para o nada. E do nada fazemos Deus, e pressentimo-Lo e adoramo-Lo quantas vezes a medo e por medo. A vida é antes um sinal de Deus. É o único "todo" que conhecemos e é desse "todo" e nesse "todo" que deveremos encontrar e perceber a Sua presença. Deverá ser por isso a vida um ensaio de alegria e não de depressão. Deverá ser por isso a nossa existência pautada no eterno reconhecimento do que nos foi dado e não do que tememos a despeito de, sem qualquer aviso, nos passar a vida tão de repente sem que logremos a certeza do reencontro divino.

amuados



De costas viradas aperceberam-se da sua semelhança. Até no virar das costas eram semelhantes: o orgulho intacto, o coração ferido.
Para lá do amuo, enquanto espanejavam as penas em jeito de chamariz, puderam sorrir:
- Não, não adianta grasnar contigo!!!


quarta-feira, julho 21, 2004

não basta ter asas para voar

Ícaro estava frustrado. Era com esta a terceira vez que se atirava do parapeito e, tirando as óbvias equimoses e o celofane inutilizado das asas azul petróleo, nada restara que fosse digno de registo. Já a Primavera passada, influenciado pelo cheiro adocicado do pólen, se jogara da ponte vermelha ao mar. Ficara então duvidoso sobre a adjectivação do seu salto: fora um voo ou um mergulho? Tivera tempo para pensar sobre esta questão durante o internamento hospitalar a que fora sujeito. Após os cuidados básicos para a hipotermia decidiram que destino lhe dar. E, tirando a comida que era de facto muito má e pouco adequada a um pássaro humano, nada tinha a reclamar do hospital psiquiátrico. Recolheu ali, de resto, algumas opiniões muito válidas que o haviam incentivado a esta nova tentativa – Tinha sido de facto um voo.
Um ano de dieta adequada, vitaminas e alpiste, tornaram-no mais leve e preparado para o rasgar dos céus. Refizera as cintas que amarravam ao seu dorso magro as asas esplêndidas e ainda, porque a parte visual não era de descurar, uma coroa de plumas multicolor . Embuído de coragem e espírito voador, fez-se ao espaço aberto. Ainda mal tocara no chão quando ouviu as proclamas:
Era a drag queen do ano!

terça-feira, julho 20, 2004

lista negra

Por portas travessas chegou-lhe aos ouvidos: Estava na lista negra!
- E estou em primeiro lugar – perguntou.
- Porquê é importante?
Claro que era importante, era mesmo uma questão de honra. Na lista negra de alguns, temos vaidade de ser os primeiros.

convite


A medo tiro de mim poucas palavras, as que tenho, escasso pertence. E se algo mais pudesse pedir, pediria então mais palavras que te desse. Pediria palavras postas no teu bolso, na tua boca, entre os lábios, entre os dedos, palavras que as lesses e relesses. Lembrar-te-iam da liberdade partilhada sem receios, manhãs de sol à tua espera, as tardes de recolhimento entre os lençóis e as noites que tardias vão espreitar a madrugada. Palavras em que visses, transparentes, as outras que construo a teu favor. Palavras só palavras que quisesses. Então quando acordasses e te visses, escrito e reescrito de palavras, percebias nelas o convite de quem sem as dizer sempre te aguarda.

segunda-feira, julho 19, 2004

luz e sombra


a um amigo:

nessa dor não há refúgio
mas o tempo sobre o tempo,
amolecendo de ternuras a saudade
pondo luz na doce sombra das memórias,
alivia de branco esse luto.

condenados


Por último, são as estrelas e galáxias as grades que nos cerram à liberdade. Do lado de lá, talvez O Carcereiro aguarde a nossa liberdade condicional, como ponto no teatro, omnipotente e atento às falas, deixas e misérias da humanidade. E então nunca somos livres, vivemos apenas virtuais momentos de euforia. E então nunca somos gente, sob o jugo das amplas fronteiras da ética que desconhecemos. E por isso não há destino mas caminho, não há vontade mas actos valoráveis à luz da Lei que tacteamos. E fechamos  caixinhas em caixas maiores, estratificamos à nossa imagem e semelhança de comuns mortais, crentes da nossa virtual liberdade e justiça, do equilíbrio do sistema de bobos e momices,  plagiando para baixo o que vem de cima. E paramos aterrados com o olhar dos que maltratados intuem a verdade pela inocência, desconhecedores do porquê de alguns brincarem ao Poderoso.

domingo, julho 18, 2004

contabilidade


Entrelaçava as palmas das mãos acariciando o vazio. Gesto repetido, tantas vezes, que lhe fazia parte do ser. A sua vida era uma longa conta corrente, exacta, precisa. Aproveitava as últimas folhas da velha sebenta escolar na qual, com rigor geométrico, traçara linhas longitudinais: Dever e Haver.
Na vida tudo se resumia a este saldo constante. Pelo final do dia, recolhia-se às contas.
Tempo sério, demorado. Já assim vira o seu pai fazer. Sentava-se na cadeira, recuperada do contentor, e debruçava-se sobre a mesa. Contornava os números, minuciosamente desenhados, redondos, perfeitos, num realce sofrido que só ele compreendia os contornos de tal aritmética. Era aquela a sua biografia.
Ocupava o seu tempo em comparações numéricas, quem tinha, o que tinha, como tinha. A inveja instalara-se serena e pausadamente no seu corpo. Tomara-o como amante fiel e exigente. Prestava-lhe culto diário, procurando no Livro Sagrado a salvação para os pecados alheios.Dos dias e das noites fugira-lhe o sentido. Da vida e da morte conhecia os algarismos. Entre os Salmos de louvor esperava conformado a ajuda divina, o Deus, reparador e presente, temível na ameaça da solidão.
O corpo juncara-se, seco de vida e amor. Como por veia cortada, escorrera-lhe a força da juventude, fluíram-lhe as energias, o suco, a cor. Pela noite, quando se deitava sozinho, ignorando os apelos do sexo viril, recordava naquela cama a companhia. Do desejo vinha a raiva contida, apaziguada pela masturbação frenética e pela certeza de que ao menos lhe ficara o colchão. Pago. A pronto!
Na casa, escura, sombria, ficaram os traços da sua passagem. Nas coisas, todas as que deixara levianamente para trás à sua partida, a marca, a história, daquela que ele só soubera perder. Nesse dia, não soubera que números desenhar na página diária. Contabilizara os pertences, os tarecos, as mobílias. Contabilizara os géneros que pouparia, as roupas, perfumes e brincos. Não soubera desenhar a sua perda. O cheque eterno prometido que ficara, assim, sem provisão.

tempo de espera

Com as primeiras chuvas, vieram os primeiros cobradores. Foi inútil dizer-lhes que agora era o tempo de espera, o tempo em que a terra saciada daria, finalmente agradecida, os seus frutos. Levaram a carripana de ir à feira aos Domingos, as pratas da tia Micaela, as imagens sagradas cheias de resina pelas rezas e promessas alumiadas. Mas não levaram tudo, ficaram as paredes  da casa, enfeitadas de quadros sem valor, os móveis toscos talhados em noites de Inverno, a cama grande de matrimónio, as enxergas dos miúdos, Asdrúbal, o burro velho, Casimira, a vaca leiteira, dois porcos cor de rosa, as galinhas poedeiras e, é claro, o Barrica, cão fiel já para mais de seis anos. Foram-se como haviam chegado, sem palavras ou cortesia. Escolhiam e levavam numa apatia desinteressada, sem saberem as histórias de cada coisa, nem sequer as "manhas" do seu mister, a troco da paciência e do conhecimento que vem da muita convivência.
Ao jantar, sentados à volta da mesa sem preço, a família conferenciou, deu ideias, ofereceu coragens e reforços. Micas iria à feira a pé e voltaria sabe Deus como. Mas a vender o quê? Desânimos sucediam as esperanças. À cabeceira, Juvenal estava calado. Não abrira a boca para sentenciar. Estava mais velho que ontem, quando caíra do céu a chuva milagreira. Pensava em todos, neles, nos animais, no Barrica que, deitado aos seus pés, também confiava no destino que ditasse. E que destino no seu sentenciar?Foi no fim, quando já todos tinham nos olhos a tristeza, que Juvenal anunciou: Vamos vender promessas! Que era isso de vender promessas? Quando no Domingo Micas se fez ao caminho, Juvenal ia com ela. Sacos vazios, coração cheio e papéis muitos papéis enfeitados. Cada um tinha uma promessa, promessas de trigo e batata, de maçãs e rabanetes... Promessas do tempo em que a espera daria os frutos.

o desamor de josefina

Nos braços de Josefina sentia-se seguro. Nunca lhe perguntara como era a vida na sua ausência, os medos que tinha nas noites solitárias, os sonhos construídos dos momentos que lhe dava, não, nunca lhe perguntara para lá do que queria saber.
O corpo de Josefina era porto seguro. Parava nele entre as marés dos dias, navegava entre as margens soltas que se abriam à vida, entre embarques e desembarques incertos. Ela, esperava-o como quem espera tudo. Da raiva contida mascarava amor desenfreado, do seu choro profuso unguento de orgasmo e ele, nem supunha diferente tão grande precipício.
Porta fechada, ainda os passos se distavam, Josefina soltava a dor em grito abafado, para dela não dar notícia à vizinhança.
Mulher boa - diziam à passagem firme e destacada pelos saltos aguçados. Anca larga, nariz de proa, patroa de si, do seu cheiro adocicado, dona do nada do seu mundo. Boa mulher, coisa diversa, mulher atenta, mão aberta, peito franco de acolhimento como poucos suspeitavam. Josefina, guerreira de fibra, que o orgulho a sustinha em momento de soçobra. Josefina, solitária, que nunca algum companheiro a levara ao mar alto.
Dela, falavam e deitavam adivinhas, muitos sabiam de coisa nenhuma, muitos a tinham de garganta sem puderem confessar alguma entrega.
Da Josefina que ficava atrás da porta, que chorava a liberdade sem temor, estranhavam os suspiros desgarrados, os olhos tristes perdidos nas águas do mesmo mar, no silêncio da embarcação ao sonho. Dela, sabia Josefina, do destino que às asas lhe falhava, venturas amordaçadas, devaneios, crenças poucas, crenças nenhumas.
Maior, muito maior que a pergunta nunca feita, a surpresa do seu não. Quando a porta se fechava sem regresso, sem mais gritos abafados, choravam-lhe o desamor repentino. Vindo do nada, motivo qualquer, mulher ingrata, mulher boa, boa mulher!

sexta-feira, julho 16, 2004

xeque-mate

Tirou o casaco de fato de treino. O fato preto de lycra justo apresentava sinais de suor. Já competira outras vezes em torneios menos fatigantes. A adrenalina acelerara o ritmo cardíaco, continuava o velho receio da violência! Os ténis raspavam o soalho em busca de firmeza e o adversário fixava-o lentamente! Estava focado, completamente focado no micro-segundo seguinte. Apesar disso, não foi sem surpresa, que recebeu o golpe fatal... Uma gota púrpura escorria-lhe pela face, mesmo ao lado da antiga cicatriz de quando, como hoje, recebera com um bispo  na testa!!! Xeque-Mate!

nada nas mãos

 
Baltazar chegou ao mercado de mãos vazias. Era assim que andava por todo o lado, mesmo quando os demais ostentavam mãos repletas. Mas as suas eram mãos diferentes: dedos mágicos, de formas fuseladas, palmas límpidas, sem traços de vida, amores ou doença. Com aquelas mãos, Baltazar fazia milagres. Diziam os descrentes que eram mãos de pobre, assim vazias, em jeito de nada, porque nada tinham para suster. Fugia-lhes ao entendimento que pouco se sustém como o nada. Abertas, eram magníficas. Encantava ver como o nada se lhes prendia, desprendendo-se em gestos largos de oferta. Comoviam, aquelas mãos de Baltazar.Ora, Baltazar, assim se passeava. Repartindo curiosidade nas banquinhas, assenhorava-se dos preços, replicando, sabedor, em maneios de cabeça. Aos frutos saborosos, aspirava-lhes o perfume, sem nunca lhes tocar. É que suas mãos só o nada sustinham. Delas tudo se desapegava. Uma vez, percebi-lhe outra vontade. Só dessa vez, parecia que à força de vento, todo ele, em espiral, se recolhia. Baltazar, distorcia-se, caracoleando-se até se fechar. Foi nessa concha que lhe fui em socorro. Desse o sol seus raios em ajuda, desse o desespero força de deus e leveza de farófias, desse a vontade milagre às minhas preces. Baltazar, em concha, parecia para sempre fossilizado. Miúdo, em compactos de nada e perfumes, nem as mãos o engrandeciam. Foi a custo de nada que se reabriu Baltazar. Como se houvera fechado também se reabria. Despudorada, pude por momentos acreditar que fora por meu socorro. Hoje, sei que não. Não socorrem mãos vulgares àquelas em que nada se prende.

quando morre uma sereia


Tão sublime e leve, transparente que ao toque se dilui no céu que a recolhe, certo deste acolhimento como de outro algum, jamais. Asas de pássaro viajante, migratório. Vôo singular, errante. Perspectiva única, elevada sobre o mar que ainda ampara o que perdeu. Criatura dessas águas, dessas conchas que enfeitavam e cobriam a nudez exigente. Ave e sereia, agora e antes, vida e morte, linha, traço comum, cheio, completo.
Sem pertences, alma apenas e ainda dividida no olhar perdido a este mundo conhecido e ao outro que descobre. Sem saudade porque cumprido o destino, apartou-se com o corpo abandonado, à vela dos choram porque ficam. Uma vaga que toca, alta, instantes o firmamento, devolve finalmente o que nunca foi seu. Que nunca é deste mundo, nem do mar, nem da terra o transitório. Efémero, férias de vida em estância balnear. Em tempo de morte, renova-se o mistério das perguntas a que sempre soubemos responder. No tempo de entrega do que por instantes partilhámos, fechamos, circular, as idades da sereia prometida.

com olhos de jornal


Nos olhos de Maria lia-se como num livro. Frases redondas, a transbordar de notícias. Frases curtas, magoadas, aliterações de choro guardado. Quando assim era, havia água por detrás dos seus olhos, inundando o seu corpo por dentro, como ribeirinho crescido pelas chuvas. Nas demais, lia-se sobre o sol vermelho dos tempos de menina, viam-se-lhe os caminhos de coral e peixinhos e até, bem mais de perto, se ouviam as vozes do coração. Maria, dava-se a ler pelos olhos, como outros pelas palavras. Dessas, Maria fazia brinquedo, verdades e mentiras bonitas, postas em verso, como flores no vaso, quando lhe calhava a rima.
Maria, ajeitava-se como os seus olhos, de muitas cores, quando neles as cores se liam. Diluída, quase transparente, quando a manhã vinha mais limpa e lhe punha o verde na íris. Andava, como nos olhos se liam as estradas. Firme de brilhos ou ausente na marcha incerta...
Era assim que se lia Maria, feita de contos desgarrados, de olhos de jornal.
No dia de anteontem, Maria trazia os olhos fechados. Cerrara-se ao mundo, por dor maior. Não havia modos de os abrir, em medo que lhe transbordassem. Nem palavra doce que amelasse de avelã os suspiros. À porta de sua casa morava despeito. Cansada de morar em casa mal assombrada, Maria fechou os olhos e afogou-se por dentro.
Deram com ela pela manhã de olhos já refeitos. Molhadas pela tempestade, já se viam rimas diferentes. Voltara-se a ler nos olhos de Maria.

quinta-feira, julho 15, 2004

outra metade


De madrugada fizera-se ao caminho. No silêncio da relva molhada entrecortavam-se conversas de pássaros e insectos. Antes que escaldasse a manhã feita e madura rasgara pela fresca o seu propósito. Há muito que embalava a decisão, pesando-lhe prós e contras, alturas e momentos. Agora, como se fosse de repente, caminhava pela estrada única que se desenhava à sua porta. Essa estrada que desfiara sempre a metade, convidava-lhe ao conhecimento. Chegara a pensar que todas as estradas eram uma só, que se encaracolavam como os desenhos de criança em que uma personagem encontrava no labirinto a sua saída para um presente qualquer. Até à data, cingira-se à sua metade. A meia vida, a meio nada, a meio caminho, a meia vontade. Estava mesmo dividido ao meio. Como se em si próprio se atravessasse um paralelo qualquer. Metade que vai, metade que fica. Desse traço criaram-se hemisférios, conflitos de fronteiras e propriedades. Metade coração, metade razão. Ainda agora que tomara o caminho, já metade se lhe regressava com saudade e outra se sobressaltava para lá diante. Metade dos seus dias dera-os ao passado era justo que votasse os outros ao futuro.
Por esta razão, de fusão e justiça de metades, reunira-se para partir. Ainda o calor não afastara a neblina quando pisou firme outro caminho.

o fonseca

Não me apeteceu perguntar-lhe porque não tocou. Lá terá os seus caprichos. Não me apeteceu aborrecer-me com ele. A bem da verdade, fiquei-lhe até um pouco grata. Esta é a função de alguns objectos, poderem ser responsabilizados, culpabilizados pela sua inércia. Desde pequena que tenho o hábito de dar nomes às coisas, aos frigoríficos, máquinas de lavar, esquentadores, bonecos, etc. Apercebi-me pois, intuitivamente e desde muito cedo, da importância de nomear o que me rodeia. Desconhecia então que esta era uma faculdade que Deus dera aos homens e, por ser divina, será seguramente mais importante do que a sua aparente inocuidade. Quando nomeamos, apossamo-nos, caracterizamos e personalizamos. O conceptualismo residente em cada nome, apodera-se do objecto nomeado dando-lhe contornos familiares, domésticos.
Quando hoje, com algum atraso, cheguei ao local onde desenvolvo alguns afazeres laborais, pude confirmar a sabedoria divina - É que o Fonseca não me acordou! Convenhamos que tem mais impacto do que a velha desculpa esfarrapada do despertador não tocar!

quarta-feira, julho 14, 2004

artes de marear

Quando o sol já quase não o era e deixava no seu lugar uma pálida irmã prateada, ela recolheu-se ao cais. Deixou as pernas ao sabor do sal e recostou o tronco na pedra quente. Naquele mesmo lugar, fazia os autos de fé dos dias submersos e emaranhava entre os dedos nós de cabos com que prendia o barco à vida. Sulcara tormentas nestes dias, razões e palavras em estado catatónico de suspensão... Sabia agora que não havia métodos que os mais intuitivos e primários. Pela sobrevivência deitara lastro de orgulhos feridos e ajoelhara a Neptuno pedindo protecção. Vira em solta torrente as lágrimas adornarem-lhe o corpo quase ao espelho do mar. Ter-se-ia deitado à sua sorte, ou à sua falta, ter-se-ia despedido com fumos de luto, ter-se-ia desapegado de outra sua parte, ter-se-ia feito a outros ventos.
O deus das águas, daquelas a que se prometera, dera luz às suas preces. Devolvera-lhe o sorriso pelo que alienara. Devolvera-lhe leme e carta. Com o corpo meio submerso, metamorfose de casco sem âncora, por artes de marear, soubera em fé aportar ao cais.

janela entaipada

Há muito tempo que conheço esta janela. A mesma fresta diária que me traz o mundo aos tropeções. A minha janela é uma janela de traseiras, de poucas notícias. Às vezes de tão poucas notícias que as invento, que construo com poucas personagens uma ou outra historieta. Há um gato que passa incólume pelo muro onde colaram vidros. Coloca, cauteloso, as almofadinhas das patas nos interstícios seguros da pedra, fazendo lembrar as cautelas de que por vezes nos rodeamos e caminhamos na vida.
Há um prédio degradado de fronte. Janelas largas, indiscretas que se assoberbam de visões para esta, minha, mais discreta.
Outras circunstâncias, vejo-lhe passar entre as portadas as imagens reflectidas da minha memória e quantas vezes corro então a cerrá-la, a medo de que se atropelem no presente. As doces, deixo-as bailar nos reflexos do vidro, saboreando-as lentamente entre uma ou outra lágrima revivalista. Esta janela ganhou peso de vida. Importância de gente.
Esta janela que hoje me entaiparam de rede verde, verde de esperança, sem aviso prévio ou consentimento. Penduraram-lhe andaimes no ventre onde passeiam, alheios às vertigens, figuras de trabalho. No verde tão esperançoso dou por mim a imaginar a hora Coca-Cola Light!

terça-feira, julho 13, 2004

verbo muito reflexo

Prometo-me-te.

dois pesos uma medida

Vale mais a tua ausência que outra qualquer presença.
A tua dor que outra qualquer alegria.
Perder-te se só assim te puder ter.

a brincar

Quando elevava a voz para os céus e mudos me saíam gritos abafados, fiz-Lhe uma pergunta:
- Acaso estás a brincar comigo? - Respondeu-me que não, que não brincava com coisas sérias...
- Acaso és Tu impotente?
- E tu? - Retorquiu.
A brincar, a brincar se dizem as verdades!

bilhete

Ah, se me desses um bilhete para o fim do mundo. Se me deixasses partir sem memória. Se acenasses o teu lenço branco no cais de embarque e eu pudesse, indiferente, acreditar na minha viagem. Ah, mas se por último galgasses as escadas, me abraçasses, me dissesses uma e outra vez que ias, ficavas, comigo e deixasses o lenço enxugar as minhas lágrimas...

entretempos


Agora que se perdeu o sonho e acordo na realidade quero forçar o sono para regressar ao passado. Quero acreditar que o tempo me vai levar depressa ao futuro. Quero nesta mistura de tempos encontrar um tempo melhor, quero encontrar um espaço diferente, onde me encolha e expanda, quero ser eu e outra qualquer.

no princípio

"A princípio é simples, anda-se sózinho..."
Parabéns Sérgio Godinho por teres resumido o início e o espírito deste blog:
Aqui se faz o princípio, a sós!
The begining of Sol&Tude!