terça-feira, novembro 28, 2006

as marionetas e eu

Sim, está bem, somos todos marionetas e o cordelinho da esquerda abre-nos um esgar na bochecha e arqueia-nos o dorso. Pois, a vida é uma merda e a humanidade é outra e não há redenção. E falem-me agora das medidas provisionais e dos objectivos sensatos. E é a guita da direita que nos puxa o pé avante e à ré o braço. E lá estou eu com a estranha mania de que somos pessoas e com ignóbil conspiração da felicidade. E que me adianta negar que rasguei as cordas e os cordéis e que vou por aí, ou por qualquer outro lado, como nunca antes? Sim, está bem, ninguém pode sorrir quando o mundo é de dor e só as lágrimas decoram as faces. E até pode ser que o meu outro cordel se tenha estragado, a tal excepção que está para a regra como eu para o mundo de peito aberto e cabelo desgrenhado. Até pode ser. Dou de barato. Ou na linha de muitos escapou-se-me o parafuso da convenção e sai-me agora o pensamento para a universalidade e para a psicose da vida e do amor. Calhou assim. Ver na chuva a promessa das colheitas e nos meus dias um quase Paraíso. E depois? Até pode ser que chore e que a minha dor estremeça os rios. Mas hei-de estar viva. Eu e este defeito de marchar ao contrário. Com os cordéis entrelaçados em razoáveis incentivos, por-vos-ei num estendal para que um dia quem sabe sequem ao sol.

terça-feira, novembro 21, 2006

vantagem de lá

O meu amigo Lourenço passou-me a bola para um desafio. A ideia era escrever sobre cinco manias minhas. Acho que não o consigo fazer sobretudo depois de ele o ter feito com tanta graça. Consegui identificar-me na íntegra com o que o Lourenço diz quando escreve:

"mania de stressar com a falta de consciência dos outros
Pomposo, mas significa apenas que me impressiona muito aquele tipo de pessoas que trata os empregados por "tu" ou aos gritos (normalmente sócios do Sporting) ou que estacionam em 2ª fila para beber a bica e aparecem em passo de caracol com o ar mais descontraído do mundo, depois de nos ouvirem apitar 15 minutos, que atendem o telemóvel numa reunião para dizerem que não podem atender, ou que falam aos berros num autocarro em silêncio, impedindo 40 pessoas de dormir ou descansar.
Admiro e invejo muito essas pessoas descontraídas."

O que ele diz é muito mais que uma mania minha, é na verdade quase o resumo de todo o stress da minha existência. Ah, e viva o Benfica!

segunda-feira, novembro 20, 2006

a minhoca sem abrigo e o pássaro vegetariano

Cesária era uma minhoca sem abrigo que arrastava um saquinho com os seus pertences pelos caminhos não alcatroados da floresta. Como não tinha muita coisa de seu, o saco não lhe pesava muito, mas o peso que o saco tinha era o bastante para ela achar que era dona de muita coisa e que dentro do seu pequeno saco estava um verdadeiro tesouro. Por isso ela já se havia defendido com unhas e dentes de algumas minhocas malandras que lho queriam roubar, se bem que isto é uma maneira de dizer, uma força de expressão, já que Cesária, por ser uma minhoca, não tinha unhas nem dentes.
Sem casa nem caminha certa, ela andava com toda a liberdade por sítios onde nunca antes nenhuma minhoca se havia aventurado. Provava folhas e frutos de árvores e arbustos, guardava pequenos pedacinhos saborosos, e só à noite, quando estava escondidinha num lugar seguro, se deliciava com o seu repasto.
Nunca ninguém lhe tinha perguntado porque é que ela não tinha casa nem família, e por isso mesmo, ouviam-se sobre a minhoca Cesária as histórias mais variadas. Uns diziam que ela era má e por isso não tinha casa nem amigos, outros diziam que ela era curiosa e aventureira e por isso corria a floresta, uns achavam que por ela não ter nada não era mesmo nada interessante e outros finalmente achavam que ela era tão pobre que nem valia a pena falar dela.
Isto não era nada importante para a Cesária e nem lhe passava pela cabecinha de minhoca que alguém pudesse falar dela e do que tinha ou do que não tinha. Mas, se alguém alguma vez lhe tivesse perguntado, Cesária diria que a sua casa era a floresta inteira até ao dia em que achasse no caminho um lugar onde valesse a pena ficar e guardar o seu saco.
Estávamos nós já perto do Outono quando Cesária, que sentia o arrefecimento progressivo dos dias na sua pele fininha, deu de caras com uma enorme e apetitosa maçã vermelha. Prontamente ela se decidiu a fazer-lhe um buraquinho para poder passar a noite mais quentinha e abrigada do vento forte. Começou pois a trincar a maçã vermelha muito devagar, com a sua paciência de minhoca, até fazer uma porta bem redondinha. Depois, puxou o seu saco para dentro e adormeceu confortavelmente com sonhos bonitos. Ainda não era bem de manhã para uma minhoca dorminhoca como ela, quando acordou com uns estremeções e um barulho assustadores. Muito alvoroçada espreitou à porta da sua maçã e viu um bico amarelo e voraz vir na sua direcção. Pensando que era o seu fim, Cesária gritou o mais alto que uma minhoca pode gritar: aiiiiiiii!!!! - O que vale é que os pássaros têm muito bons ouvidos e Juvenal arregalou os olhos à procura de quem tinha assobiado tão baixinho.
A pobre Cesária tremia muito, muito, e o pássaro Juvenal olhava para ela curioso – Não tenhas medo! – disse-lhe ele num chilreio carinhoso - E o que tens tu dentro desse saco? Posso saber?
- Ora essa, tenho muitas coisas! Tenho todas as minhas coisas! Mas isso não interessa a um pássaro comilão, pois não?
- É claro que me interessa, senão não te estava a perguntar não achas?
Cesária achou que ele tinha razão. Ninguém deve fazer perguntas sobre uma coisa que não queira saber. E pela primeira vez Cesária despejou o seu saco e mostrou a alguém o que nele guardava. Folhas e pedrinhas de muitas cores, algumas tão brilhantes que se diria guardarem o sol.
- Que lindas! – Exclamou Juvenal verdadeiramente embasbacado – Tens aí um tesouro! Eu no meu ninho não tenho nada de tão belo. Queres conhecer o meu ninho? Anda, anda daí.
Cesária não era tola e sabia perfeitamente que os pássaros comiam minhocas, prendendo-as no bico para depois as engolirem e engordarem o papo. O que Cesária não sabia era que Juvenal era um pássaro diferente. Juvenal era vegetariano e alimentava-se só de folhinhas e frutos porque tinha muita pena de comer os pequenos bichinhos como as minhocas.
Está-se mesmo a ver que Cesária e Juvenal ficaram muito amigos. Ela era uma minhoca sem abrigo que arrastava um pequeno saco, e ele um passarinho que voava sozinho sem um bando que o acolhesse. Os dois conheciam e apreciavam o gosto das folhas mais tenras e raras e das maçãs e pêras mais suculentas. Sabiam onde encontrar as melhores bagas e sementes e como combinar os seus paladares das maneiras mais exóticas e requintadas.
Com o tesouro das pedrinhas brilhantes como o sol e com muito afinco de ambos, Cesária e Juvenal inauguraram nesse mesmo Inverno junto à arvore da maçã vermelha um restaurante vegetariano que foi um verdadeiro sucesso.
Foi assim que Cesária encontrou em Juvenal o abrigo que sempre procurara e que o restaurante dos dois bons amigos se tornou o local mais famoso da floresta das olaias.

sexta-feira, novembro 17, 2006

inventando um inverno de avó

Vou dedalando bainhas em pontos e alinhavos de sonho como gotas de chuva em sombrinhas descaradas e pasmo com os pequenos sorrisos debruados nas linhas do meu rosto reforçadas pelos muitos anos.
Olho o calendário dos dias que esvoaçam das suas casinhas quadriculadas, paralelas, e perco os olhos na imobilidade do ar, vendo o sentido da vida a desenhar-se como um horizonte cerzido num pano.
Escondo a luz de muitas auras repetidas e penso que a vida não tem idade porque as horas passam de fininho até darem fé da hora do lanche. Há uma paz na chuvinha tão miúda e pequena que desenha ribeirinhos nas vidraças, o cheiro do chá e das torradas a bailar nos azulejos e o forno com entrançados biscoitos de manteiga. Há uma história de uma casa imaginária onde é bom haver notícias de um jornal, risos entretidos de criança, com cacau, bolachinhas e doce de morango.
Há um acolhimento milenar muito próprio do Inverno, uma fome de um lar com gente e fogo quente na lareira e as cortinas nas janelas de madeira onde espreita todo o tempo conhecido. Há uma família entre as linhas dos meus dedos e desejos que se junta em ceias e serões de luzes amarelas, multiplicando os meus silêncios em músicas de Natal e gargalhadas, atropelando de gente e gatos o corredor vazio.
Vou fazendo costuras de estações e arremates de palavras unindo um futuro copiado de um passado, numa renda de avós e netos debruçados em afagos e bonecas penteadas.

"costuras de estações" foi roubado - com autorização - ao meu amigo Batista

quarta-feira, novembro 15, 2006

agora com quase quarenta

Estava eu grávida de três meses e ocultava ainda o facto a todos os colegas de trabalho para não ser bombardeada com as habituais despropositadas intimidades que uma barriga mais proeminente parece suscitar a par com as conversas de circunstância que, quando abandonam o tema da meteorologia, se tornam ainda mais irritantes - vai ver que é uma menina!, ah... a barriga redonda é sinal de rapazinho!, e outras idiotices no género bem piores que o hoje está de chuva. Mas, como o destino é matreiro, quis a providência que uma das colegas mais afoitas me brindasse em certo desses dias e logo pela manhã com a seguinte pergunta: Então ó doutora e meninos? - Aqui a resposta saiu-me pronta: Olhe, meninos é quando eu tiver quarenta anos e começar a atacar à porta dos liceus!
Anos volvidos, penitencio-me e corrijo-me, à porta dos liceus não digo mas à porta do Conservatório... Ai! Albano!!!

segunda-feira, novembro 13, 2006

só que se repita

Pois que este tempo é sinal dos glaciares desfeitos pelo calor com as praias a chamarem o Natal a banhos tardios. Mas eu que nem dou pela desgraça, pelas camisolas de gola trocadas pelas alças, com os pés na areia e a cabeça nas ondas e os braços enroscados ao centro da terra e do mundo. Nem pela luz que falta mas que não faz falta pela vela preguiçosa de curto pavio chinês que me põe a sombra no nariz. E sei lá eu se mereço mas acho que sim, e empurro a custo tanta alegria para dentro de mim, sobrando esta no sorriso rasgado e na paz com que me deito mais perto do meio, onde tudo o que quero me abraça de manso e maciamente e falanges curiosas me assaltam o dorso descoberto. Mas não juro por vergonha, só o faço no silêncio, que este Outono reinventado é por minha causa, e até a minha convicção se ri de mim, e de tamanha criancice tão despudoradamente fundamentada. O sol lá se pôs e a noite cresceu, comigo a tentar fazer arquivo na memória e a mala a guardar pequenos lembretes com os frascos de banho e a roupa usada, atabalhoada na pressa dos zips duplos que se fecham num beijo selado e casto. Pronto. O tempo passou ou ainda dura. Está quente demais sabendo que é Novembro mas que sei eu das estações ou da propriedade das coisas, digo que é meu e por minha causa porque assim divinamente parece acontecer. Está certo que assim seja como esteve errado que não fosse, porque a alegria merece tanto como a dor, ou mais, mesmo mais arrisco dizer, já que me enche desta maneira mais completa, já que me deixa sem resposta ao que mais quero. Nada. E nada mais é mesmo assim, porque é verdade. Talvez só que se repita. Definitiva e demoradamente, este tempo dos sentidos destemperados só em virtude de mim.

cito-me

Quando se recusa uma vista de mar ou se é louco ou a felicidade mora inteira com os cinco oceanos dentro do peito.

segunda-feira, novembro 06, 2006

esta bolha

Este nosso tempo é uma bolha inventada e o meu dedo é o alfinete aguçado que a quer fazer rebentar. Sou eu que teimo numa fronteira onde a tempestade começa, ou é a ausência da dor que torna estranha esta manhã vazia? Ou é a lua redonda que não explodiu em cataclismos de enchentes e fins de mundo? Como te encaixo eu nas minhas paredes brancas ou na minha cama de um só lado? Que incómodo é este pela alegria que me afronta? Ou não quero chamar eu medo ao que é medo, ou és tu e eu que somos tudo mas que nada vemos nesta recíproca miopia da infelicidade? Ou teria havido um tempo. Ou haverá um tempo. Porque neste tempo parece estranho ser possível. E o que faço eu do meu tardio embaraço adolescente? Ou somos nós que sonhamos os mesmos sonhos e achamos estranho entretermo-nos a juntá-los? Ou é a lua que nos finta e desafia tornando esta vida numa bolha inventada e os nossos dedos em riste teimando fazê-la rebentar. Porque me escapam as palavras que te diga. Por tanto te conhecer sou igual ao que sempre te neguei. Esta bolha onde escondemos a realidade da realidade e a fantasia da fantasia. E o meu dedo procurando a dor da explosão desta trincheira que esses sulcos são-me bem mais familiares. Mas não quero esta minha mão tão vazia. Mas não acredito que toda a razão do meu tempo esteja tão serenamente pousada como uma bolha entre os meus dedos. Porque é bem mais razoável e humano não ser feliz.

o regresso

Deste meu amigo e das suas palavras de mel à ilha dos mutuns.

sexta-feira, novembro 03, 2006

fiz madeixas

quinta-feira, novembro 02, 2006

o funeral

E a pá do coveiro não magoa ninguém no seu alarido de metal. E os solavancos do caixão só doem aos vivos. Aos que olham a terra e não o céu. Deixando escapar o abraço ampliforme do vento e o anúncio da última corrida nas salvas de tiros. Prolongamos a dor dos que partem, recusamos-lhes um sorriso de cumplicidade, e a cor branca nos trajes anunciando a paz. Depois cai a chuva. Molha os corpos. Os vivos e os mortos. Abrem-se os chapéus e fecham-se os caixões. E a pá do coveiro não magoa ninguém no seu alarido de metal apressado. Pela chuva. O coveiro molhado. E o defunto húmido estremece no seu leito pesado. Descansa. Descansa em paz. Recusamos essa paz e um sorriso cúmplice. Basta olhar o céu na direcção das bátegas. E abrir os dentes. E sorrir. Sentir o abraço ampliforme do vento como se ouvem as salvas de tiros. A última corrida. A da morte. Vai. Descansa em paz. Depois fugir dali como quem foge da morte. E à morte não se foge nem interessa fugir. Ela que anda desgostosa por lhe recusarmos um sorriso, um sorriso cúmplice, a ela e aos que ela de bom grado acolhe na sua paz. A paz da última corrida quando já não há mais a correr. E nós com as lágrimas, o egoísmo e a saudade. Sem sentirmos o abraço ampliforme do vento. Como sentimos as salvas dos tiros e o alarido de metal da pá do coveiro já tão molhado. Pela chuva. E o caixão húmido a par com a terra para ali fica. O coveiro solitário. Indiferente. Como se sentisse o abraço dos mortos na curva do vento. Sem sorrir nem nada. E os sapatos a deixarem pegadas fugitivas. Ao portão e à morte. Como se interessasse fugir à morte. À morte não se foge. Nem ao abraço ampliforme do vento e dos mortos, nem à cumplicidade de um sorriso que esbarra na foice da ceifeira desgostosa. E nós com as lágrimas, o egoísmo e a saudade. Descansa em paz. Descansa em paz. E nós recusando o branco e o sorriso na direcção das bátegas. O alarido de metal. E os passos fugitivos magoados, egoístas, ao portão, ao coveiro, à morte.