sábado, abril 30, 2005

o sapato no nariz

Porque uma narina não é uma sapataria, ainda que de bonecas, liguei os quatro piscas e voei rumo ao centro de saúde. Pelo caminho vociferei palavrões pela janela do carro a alguns idiotas que se atravessaram à minha frente. Palavrões que, refira-se, há cinco anos a esta parte evito que a minha filha ouça e aprenda na escola. Vendo as coisas pelo lado positivo mais vale que os aprenda com a mãe ou, tendo fé, pode ser que o sapato na narina lhe tenha perturbado a audição.
Ao fim de algum choro, sangue e persuasão, a rapariga deitou-se na maca sob a luz forte do projector. Com uma pinça o objecto foi extraído. A médica olhou com desdém para o minúsculo sapato da "Polly" e, pareceu-me, para mim também. Talvez por lhe ter comprado a boneca que usa os sapatos. Talvez pelo meu ar amargurado e apocalíptico. Talvez porque ela fosse uma das condutoras incautas que, paulatinamente, se dirigia ao seu local de trabalho.

sexta-feira, abril 29, 2005

quartos e janelas

Um quarto é da cor que nós quisermos, do amor que lhe pusermos lá dentro e das carícias que deixarmos respirar pela janela. O meu, branco, encheu-se de amarelo sol. Mas quartos haverá, que com tinta dessa cor, ainda assim serão soturnos com janelas de sombras e insónias. Um quarto é o país que nós sonharmos, feito dos cheiros e das especiarias que exalamos. No meu, ficou o cheiro da canela, doce e quente. Mas quartos haverá, nas Índias mais distantes, em que os aromas morrem sem cheiro que lhes avive as cantarias. Um quarto tem o gosto que lhe dermos, sabor a mar e seus frutos. O meu, encheu-se de sal e delícias. Mas quartos haverá, que com janelas oceânicas, jamais terão no palato a arte de assim navegar.

quinta-feira, abril 28, 2005

à pesca

Vê lá tu pescador o que te vem no anzol, fruto da espera e do engenho. Ou será fruto da sorte o que te traz a maré? Fruto de um acaso despótico que te brinda com pouco ou nada? Acreditas tu pescador no destino? Nos traços incontornáveis das ondas e das linhas batimétricas onde um dia rebentará a espuma ou o sentido do mar? Fazes tu fé em Neptuno e nos seus caprichos? Na mão poderosa que segura o tridente e governa majestosa os oceanos? Ou não fazes tu fé que não nos teus pés enterrados na areia da praia, pilares da tua existência, feitos em molde certo para esta faina? Vê lá tu pescador por onde erram os peixes, cardumes de presas para o teu sustento e se com eles errará a razão de todas as águas.

quarta-feira, abril 27, 2005

lição da borboleta

A transformação da crisálida em borboleta aponta para a redenção, no futuro. Anuncia a liberdade das asas e a magia do vôo aos agrilhoados, a Criação num momento e a Metamorfose final - "Eis que vos digo um mistério ... seremos todos transformados, num momento, num abrir e fechar de olhos, ao ressoar da última trombeta" (Primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios, capítulo 15, versículos 51-52).





segunda-feira, abril 25, 2005

acordar

Porque não dei pelo tempo? Pelas horas de água consumidas na clepsidra de cristal enquanto o vento era anestesia e eu brincava distraída nos detalhes da minha fantasia? Porque não dei por ti que crescias ao meu lado tão real esperando a minha mão para te empurrar o balouço, entornando o copo e correndo cheia de vida em passitos pelo corredor? Trezentos e sessenta e cinco dias congelada, amante do torpor que uma noite se instalou e não me trouxe a madrugada prometida. E se a espaços acordava estremunhada porque não pude então despertar e correr desabrida pela estrada, pela casa, pelo mundo, onde os teus olhos cinzentos me chamavam? Levo-te ao parque e descubro o segredo, o antídoto de todo o medo, escondido no teu sorriso de criança, gorgolejando mil e uma gargalhadas, por enfim estarmos tão simplesmente, juntas e de mãos dadas.

sábado, abril 23, 2005

assim de repente

Não há mais, não há mais. Nem Maio, nem desvario, nem mal ou arrepio, nem doença ou convalescença, dicotomia, alegria ou tristeza, nem espera, nem crença, triângulos, círculos, abertos ou fechados, nem dias, nem noites, nem fados ou teorias, perdões e arritmias, imagens, fantasmas, vírus e viroses, posturas e poses, beijos, trocadilhos, orgasmos e filhos, não há mais! Nem partes, nem soluções, dúvidas ou questões, aldrabices, fanfarronices, egos, alter-egos, máscaras e disfarces, enlaces e desenlaces, crises, reconstruções, passados, presentes, misturas, confusões, duas, três ou quatro, nem luxúria, nem recato, não há mais! Assim de repente, não há mais. Nem cama, nem passeios, cinemas e recreios, comparações, leves, pesadas, cheiros e almofadas, corpos, livros e leituras, esperas, verosimilhanças, esposas, amantes, palavras, promessas forjadas, dádivas, tempos, alentos, pendentes, silêncios, confissões, assim de repente, não há mais!

quarta-feira, abril 20, 2005

patrocínios e ocupações espirituais

Pois houve quem tecesse críticas ao Divino Espírito Santo e à luz com que "patrocinou" a escolha dos Cardeais.
Já este Espírito Santo que não andou tão ocupado patrocinou mais uma divina vitória da equipa da Luz!
SLB! SLB! SLB!

terça-feira, abril 19, 2005

cenas de amor

Pelos intervalos anunciados com estridência pela descarada campaínha rouca da escola, saiam para o recreio de mão dada. Acreditavam no destino, qualquer coisa que assim é porque é assim que deve ser ou qualquer coisa que será porque o fruto dela já trazia semente. Não que importasse verdadeiramente perceberem se as mãos se uniam por um propósito ou se, na ausência despropositada de razão justificativa, as mãos se entrelaçavam com vida própria. Talvez a sede de dedos semelhantes e conhecidos as levasse à união ou então, pura e simplesmente, porque se descobriam unidas em encaixe perfeito antes que a razão fosse levada a achar qualquer coisa sobre o assunto. Seja assim ou de outra forma, balançavam as mãos em jeito de passeio que o tempo não dava para grandes considerações. Dava o tempo para outras coisas, para se aperceberem da sua escassez, de como eram curtos os intervalos entre toques roucos e estridentes da desafinada campaínha e como as mãos entrelaçadas sofriam ao desenlace forçado. Creio que já era muda a campaínha e ainda as mãos se davam e desdavam da mesma forma, no mesmo ritual, como se ainda no silêncio dos intervalos adivinhados partissem juntas para o recreio. Não sei, no entanto, se por milagre, foi a mesma campaínha que ouvi soar, rouca e descarada, quando uma longa vida depois, quis o destino ou o fruto da sua semente, a morte fazê-las separar.

segunda-feira, abril 18, 2005

a piolha

Pediu-me a modelo que aqui figurava que retirasse a fotografia dela do computador. O direito à imagem e à privacidade é sagrado. Resta-me obedecer-lhe!

em sintonia

De cá, de onde o vento sopra pela manhã, as notícias têm essa frescura assobiada, a melodia do piano assombrado pelos nocturnos proibidos e o choro contagiante da sagrada madeira dos violinos que tange ante o ranger da sofreguidão exumando a saudade morta. O refolhear sibilante dos mesmos corpos, impressos por onde calha, aqui e acolá, procurando de mão dada novos recantos para o silêncio da novidade dos contornos. Dir-se-ia que nada de novo, erradamente, porque de cá, de onde o vento sopra pela manhã, pintalgam-se coloridamente as mesmas notícias, o mesmo solfejo compassado do reencontro que se repete até ao abraço cansado que por fim nos une em sintonia.

sexta-feira, abril 15, 2005

onde está o "o"?

Naquele dia a caminho da escola Matilde perdera o "o". Dera-se conta da letra perdida quando, já na aula de Matemática, quis escrever "socorro" num bilhete que dirigira à Ana. E agora? - Que seria dela sem o "o"?. O "o" é uma letra demasiado importante para se perder - pensou.
Rebuscou-a dentro da mochila cor de rosa, entre os papéis amarfanhados no lixo, nos bolsos do blusão de ganga e até em outros livros de diferentes matérias. Encontrou-o já tardiamente perto do "z" no cabeçalho da sua última prova onde, impiedosamente e a vermelho, o professor escrevera um rotundo "zero".

quinta-feira, abril 14, 2005

é para amanhã!

Hoje, por detrás de cada espirro e de cada fungadela, fruto de uma constipação primaveril, e de uma narigueta vermelhusca e congestionada, persegue-me a sensação de que me esqueci de algo. Revejo as tarefas diárias a que me tinha proposto, abastecer de gasóleo a viatura, comprar fruta, areão para as feras residentes, aspirinas, pagar a conta do telefone. Mas, mau grado não as ter cumprido na quase totalidade, não é de nada disto que se trata. Sei que o dia terminará na mesma incerteza porque o mais provável é não me ter esquecido mesmo de nada. O que não é mau, inversamente, serve-me de estranho alívio à consciência pelo facto de adiar sistematicamente aquelas de que ainda assim me lembro.

quarta-feira, abril 13, 2005

juro

Quando a noite chegar à tua casa com o saco de fantasmas às costas, embalo o teu sono no meu colo até à manhã do dia em que possas vencê-los.

nem só de pão vive o homem



Estranhas e benfazejas confirmações dos mais corriqueiros ditados populares, quando a comunhão espiritual é o alvo que as setas do desejo e do destino alimentam e trespassam. Porque há horas de fome benditas!



terça-feira, abril 12, 2005

cinco anos

Pela meia noite de dia doze para treze de Abril do ano de 2000 anunciou-se com um espirro uma pequena criatura de olhos vivos e penetrantes. Apesar do cansaço das quatro horas últimas pude reconhecer-lhe a perfeição e dirigir-lhe cara a cara as primeiras palavras - és tão gira!
Reapareceu-me com um gorro às riscas que lhe emprestava um ar cómico e confortável. Por falta de berços, passou a noite comigo. Eu, a medo que me caísse do lado, deixei as horas passar em terna mas receosa contemplação.
E agora? - Pensei. Pior que os pedidos não atendidos, por insuficiência de anestesistas, de uma ambicionada epidural, era a dúvida da minha capacidade perante uma vida nova e tão dependente dos meus cuidados. Este namoro dura há cinco anos com a mesma entrega e com a mesma paixão. Os receios, vou-os vencendo à custa da inevitabilidade do tempo e das circunstâncias, o amor, vou-o sedimentando pela dádiva - porque é disto que o amor se trata.
Parabéns piolha.

segunda-feira, abril 11, 2005

morte da sede

Quem me traz um copo de água que mate esta minha sede? Porque o que mata o que de morte fere não é condenado ou porque a sede, sabemos, ressuscita?

sábado, abril 09, 2005

dixit

Nada nas linhas nem nas entrelinhas. Que os espaços que rabisco de tinta sejam apenas sorvidos por quem me quer bem e que os arautos da vida alheia extrapolem livremente dos meus miados.

sexta-feira, abril 08, 2005

apoio à cultura

Sai-se da Ler Devagar sem pressas, com o vagar que o nome pede, e deambula-se um pouco pelas artérias vizinhas à espera que estas nos digam o que fazer depois. Há bancas toscas no jardim sobranceiro com livros velhos e mal arrumados. Por hábito e curiosidade espreitam-se as lombadas rombas e reconhecem-se alguns velhos companheiros de páginas amarelecidas. Damos conta da sentença dos anos e recolhemo-nos ao pensamento de que também a nossa tez é mais taciturna.
- É um euro cada menina!
- Um euro?
Abrem-se os lábios que mostram dentes estragados num sorriso patusco - "É o apoio à cultura!"
Apoia-se com convicção a cultura que o dinheiro reverte de imediato para a cerveja fresca no quiosque dianteiro, ensacam-se cinco exemplares com algum carinho porque a palavra menina é persuasiva e soa a mel.

quinta-feira, abril 07, 2005

como sempre

A semente da vida é resistente, latente no solo ressequido aguarda uma gota de água que absorve sequiosa e renasce, quase ressuscita, por entre as pedras calcárias do desalento. Humedecendo a hermética concha ovalada, abre-se a fissura por onde espreita a manhã que ditará o futuro. Espojada ao sol, centrifuga as energias e dela brota repentinamente o primeiro desejo de fome e de movimento. Como na repetição circular das estações, sucede-se a Primavera e o degelo ante a estupefacção da inevitabilidade da fé e do conhecimento. Porque apesar de sempre sabermos que assim é nem sempre achamos que assim vai ser.

quarta-feira, abril 06, 2005

o descanso e a vigília



Encontraram-se na troca de turnos, trocaram um bocejo e um carinho dorminhoco. Por vezes sobrava energia para falarem do sol e da lua, dos rouxinóis e dos mochos, dos bares e dos cafés matinais e por vezes comentavam, entre si, com muita sabedoria como eram detentores de toda a realidade.



caracóis



Da autosuficiência do hermafroditismo à complementaridade única, simbiótica e inevitável da amizade ou, como por detrás de cada carapaça, mora a necessidade de olhar o sol a dois.





terça-feira, abril 05, 2005

tempo

Há horas maiores que outras, quando os segundos compassados tilintam pelo espaço oco, vazos de razão. Nem só por isso o tempo é relativo mas é razão sobeja para que lhe esperemos dar um sentido.

segunda-feira, abril 04, 2005

casa das mentiras

Na casa das mentiras jogava-se à verdade. Na sala dos espelhos onde tudo se reflectia. O padre dormia sem ninguém para confessar e o louco delirava que cada sua palavra era a mais pura verdade. E jogavam os amantes em juras eternas e a casa dizia-lhes que eram efémeras. E jogavam os ladrões e os psicopatas e os espelhos reflectiam a mentira em que viviam mas a casa solene profetizava que aquela era a sua verdade. Na casa das mentiras, na sala dos espelhos onde tu te perdias e eu te encontrei, perguntei-te o que por lá fazias. Fugias do medo, da realidade, da pena e da saudade. E num lençol ao teu lado, estava adormecida uma outra rapariga, sonhando agarrada à tua mentira até que esta um dia fosse verdade. Na casa das mentiras onde não há noite nem dia, deambulavas louco quase perdido. Trouxe-te ao jardim e ali mesmo, perto de mim, puz-te terra nos pés e lágrimas nos olhos. Perguntaste-me então o que era de mim - Eu? Só por ti nunca dormi! A tua verdade já quase adormecida é a minha verdade e a minha mentira.

domingo, abril 03, 2005

furtos fortuitos

Pedem-me tempo e eu tento explicar que o tempo é algo que me tiram diariamente. Furto formigueiro porque dele, como a água, todos precisamos para viver. Curioso este furto fortuito que me fazes tu e a vida.

sábado, abril 02, 2005

rosas de pedra


Poucas mais vezes estarei só, sabendo de ti por soluços de tempo. Onde estiveste e o que queres tu fazer?- são apenas pétalas das eternas rosas de pedra que me prometeste.

Há um tempo para tudo e um lugar para tudo. Agora é tempo de ressurreição e de luz.

sexta-feira, abril 01, 2005

porque hoje

É um bom dia para anunciar o fim deste blog. Feliz primeiro de Abril.