quinta-feira, novembro 25, 2004

viagem aos céus

Céu sagrado e imenso povoado dos que recordo com saudade. Espaço de todos os espaços, margem ao horizonte entre o azul e o branco, entre o próximo e o infinito. Tela de todos os sonhos, de todos os quadros, de toda a arte. Mecenas das tristezas, abrigo dos desamados e dos amantes, chapéu de sol e chuva, rota dos alienados e dos convictos, insustentável leveza, insuportável barreira, lente real, suporte místico. Pauta dos ecos, música dos silêncios, imutável certeza, herança dos meus filhos e dos meus antepassados: guarda contigo essa nuvem que rasgo hoje com o meu olhar, sepulcro da viagem que hoje por ti decidi encetar.


quarta-feira, novembro 24, 2004

o sexo fraco

Ao longo de séculos de história procurou-se minimizar o sexo feminino relegando-o a um lugar e papel secundários, à estupidez e à fragilidade, vedando às mulheres o acesso à cultura, à decisão, ao trabalho, ao prazer, etc, etc. Talvez seja à custa de ultrapassarem todos estes obstáculos que as mulheres são hoje na sua grande maioria incomparavelmente mais versáteis, mais profissionais, melhores seres humanos, mais resistentes aos confrontos e às adversidades.
A Igreja Católica assumiu e propagandeou secularmente uma perversa e demoníaca imagem da mulher enquanto responsável pela tentação do homem e pela sua queda em pecado (temos pois um Adão fraco, idiota e incapaz de resistir e decidir por si próprio). A Igreja de resto é ainda hoje, no meu modestíssimo entendimento, responsável por inúmeros traumas sexuais e comportamentos desadequados de jovens que se debatem interiormente entre os dogmas católicos (que lhes são impostos como condição necessária para a aceitação familiar) e a liberdade saudável e responsável da prática sexual. Destes comportamentos desviantes são exemplos as jovens que para se casarem virgens se entregam exclusivamente à prática do sexo anal e os jovens de ambos os sexos que se espartilham em "manobras preliminares" consideradas menos censuráveis que o acto sexual completo, ou seja que a penetração. Gostaria muito de saber qual seria o entendimento de Jesus Cristo sobre esta interpretação mitigada da doutrina da Igreja e do natural desejo sexual dos nossos jovens...
Neste contexto e porque há bem pouco tempo me foi oferecido um livro cujo título é "As mulheres gostam de foder", não posso deixar de lamentar que, em pleno século XXI, ainda seja novidade e motivo de admiração a aceitação do papel da mulher como ser humano completo, com vontade própria, sexualidade assumida e, espante-se, com desejo sexual tão ou mais activo que a maioria dos machos que por aí continuam a alardear a sua suposta masculinidade e a considerar como mulheres "duvidosas" as que têm simplesmente a coragem de assumir que gostam tanto de sexo quanto eles.
Por e para esta breve reflexão, deixo-vos esta imagem fantástica de uma verdadeira vaca contemporânea que, sem arreios, receios ou tabús saíu livre a cavalo no seu garanhão.

sexta-feira, novembro 19, 2004

antevisão

Antevejo-me nestas palavras que estão por ser proferidas. Ao som do silêncio de quem espera na convicção do nada. Antevejo-me nesta noite entre sonhos e cobertores de nuvens, ansiosa. Antevejo-me nas minhas decisões adiadas, levando ao limiar do impossível a possibilidade desta existência, a força prestes a ser esgotada. Antevejo-me entre as bolhas de sabão do duche quente que tomarei pela noite já quase madrugada, quando as lágrimas forem enxutas na tua toalha e o sofá me convidar só a mim a completá-lo. Também nas horas lentas que me roubam à vida e no nó que antecipa a entrega ao mar salgado que corre solto pelas faces, envergonhada. E não me revejo nesta antevisão. Dou por mim a procurar-me. E na retrospectiva atropelam-se essas poucas imagens do teu corpo. Ali mesmo ainda ontem a sorrir-me. E depois falarei para mim e para o espaço das promessas quebradas. Das perguntas que não faço. Dos pedidos que não digo. E tento ser maior. Maior que a certeza da minha insuficiência. Maior que tu. Melhor que eu quando me sinto assim. E ouço uma ou outra música que sei de cor e acabo por ouvir aquela. Pelos acordes a dor fica maior quase transcendente e na janela procuro o ar que me falta e no escuro a luz de outra casa e na memória alguém que não quero mas que podia estar presente. E afasto a noite e o peso da manhã que promete ser igual e agarro a almofada que guardo no roupeiro em busca do teu cheiro e agarro o livro esquecido na página relida à força do esquecimento e percebo que as linhas de uma outra história não se repetem. E se acaso prometi não voltar a chamar-te, adormeço muito arrependida de quebrar essa promessa.

post doméstico

Hoje queria que as palavras me saíssem inspiradas em torrente. Tal qual a água que ontem saiu da minha máquina de lavar roupa e me inundou o chão. Que de mim conseguisse retirar o filtro que impede a exacta transcrição das minhas emoções como o filtro que retirei da máquina e causou o dilúvio. Apanhar os pedaços soltos de mim, torcê-los com uma esfregona para o balde e deixar enxuta de lágrimas a minha alma como deixei por fim a minha cozinha.
Arredei máquinas, cama de gatos, ensopei toalhas e tapetes com uma diligência reactiva impecável. Gostaria de transpor essa eficácia para a minha vida interior. Arredar passados e presentes, ensopar as mágoas e os desencantos e pôr de novo o motor a funcionar num programa mais simples, sem pré-lavagem. Talvez a temperaturas mais mornas que os graus tropicais com que gosto de brindar a minha roupa e as minhas entregas. Tinha posto carga demasiada na máquina. Roupa a mais para o seu tambor. Creio que esse é um problema recorrente. Mania de carregar aos ombros o peso da vida e dos problemas próprios e alheios e misturar tudo de uma só vez. Lavar tudo de uma “vezada” só!
Seca a piscina improvisada nos azulejos, dividi a roupa em dois molhos e defini prioridades. A roupa urgente que lavei em seguida e a que podia esperar. Também assim deveria fazer comigo. Problemas urgentes e os que podem esperar. Pôr amaciador delicado nesta amálgama de sentimentos e olhar com serenidade a centrifugação dos dias sem stressar... Sentar-me em seguida no sofá e gozar a plenitude da sensação de uma missão cumprida.

agradecimento


Ao Sr.Barão que gentilmente me enviou esta bela foto desta felina baronesa de ar meigo e matreiro.
Está com aquele ar que normalmente antecipa o salto para cima de um qualquer móvel pejado de bibelots imprestáveis...




quinta-feira, novembro 18, 2004

gata ciumenta

Vou esperar na minha cesta de vime. Aqui enroscada na minha almofada. Não volto a ir para o teu colo, nem a ronrronar nem sequer a roçar-me na tua cara. Verás depois o que é viver sem mim... Ligo para a protectora e instauro-te um processo por abandono! Vais ver como é que elas mordem! E não adianta arranjares outra para levares lá para casa... Nenhuma terá o meu cheiro nem o meu miar nem sequer este andar felino e sensual. E quando morreres de saudade e de arrependimento e trouxeres os meus brinquedos para jogarmos juntos, terás apenas uma resposta: miaauuu...
Já devias de saber que era assim!

quarta-feira, novembro 17, 2004

o tempo

-Por favor, tem horas que me diga?
-Sim, tenho.
-E...?
-E o quê?
-E que horas são?
-Ah, quer saber as horas!
-Sim, eu perguntei-lhe as horas.
-Não, não perguntou.
-Como não perguntei?
-Não, não perguntou.
-Claro que perguntei. Por acaso está a gozar comigo?
-Não.
-Não o quê?
-Não, por acaso não estou a gozar consigo.
-Então?
-Mas então o quê?
-Então, tem horas que me diga?
-Sim. Já lhe disse que sim. O senhor é que deve estar a gozar...
-Como se atreve? Pois se eu só quero saber as horas....
-Então porque não pergunta?
-Olhe vá à merda!
-O senhor está ser incorrecto. O que lhe dá esse direito?
-O senhor! O senhor é que me dá esse direito por que está a gozar comigo desde o início.
-Não. Não estou a gozar consigo já lhe disse...
-Mau... então homem desembuche...
-Mas desembucho o quê?
-As horas, homem! Que horas são?
-Ah! São dez e um quarto. Porquê?
-Porquê o quê?
-Para que quer saber as horas?
-E o que tem o senhor a ver com isso?
-E o senhor para que é que queria saber se eu tinha horas que lhe dissesse?
-Para me dizer...
-Então porque não perguntou logo? Olhe vá à merda!
-O senhor é parvo... está a fazer perder-me tempo. Com isto tudo que horas serão?
-Não sei! Olhe, pergunte!!!

terça-feira, novembro 16, 2004

desarmada

-Ó mãe eu queria um irmãozinho!
-Mas filha eles quando nascem são muito pequeninos. Ele não poderia logo brincar contigo. Só choram, comem e dormem.
-Ah! Mas não faz mal. Eu quero um na mesma. Já escolhi o nome... Pipo!
-Mas filha, pode ser uma menina... que depois vai querer as tuas roupas e os teus brinquedos...
-Ah... Bárbara. Podia ser Bárbara...

quinta-feira, novembro 11, 2004

está frio

Pequeno interregno neste blog para
a sua enrregelada autora ganhar coragem
para posts quentes.
Até já.



quinta-feira, novembro 04, 2004

narciso

Narciso nasceu do jeito de quem nasce por acaso. Acaso de mãe, acaso de pai. Narciso sem apelido que lhe pusessem, Narciso só assim. Nasceu de dentro de si mesmo, na falta de melhor ventre, em dia de tamanho igual à noite, equinócio, solestício, não sei bem. E ao grito de vida, sucedeu-se grito de espanto e ao grito de espanto outros gritos e suspiros, outros medos, outros silêncios. Criou-se como se cria por milagre erva em terra seca, bicho em pedra sobre pedra. Cultivou-se de carinhos alheios, roubando sorrisos de outras crianças, mãos de outras mães. Aprendeu por imitação quando rir, quando chorar. Não aprendeu a sentir que ninguém lhe ensinara. Vestia personagens como ninguém - Narciso alegre, Narciso triste, Narciso rico, Narciso pobre, Narciso velho, Narciso criança.
Narciso que se perdia entre roupagens, entre falas e gestos decorados, entre poses e trejeitos melhorados à circunstância.
Fez escola na rua, apurando engenhos, colocando ouvido e voz. Fez escola de outras escolas, de conversas e palavras, negócios de mulher vendida, contratos de honra muda. Bacharel de enfeites, Doutor camaleão, passava entre as frestas do tempo, ensinando-se o que aprendia de valor, sem valor, sem censura, sem limite, sem fronteira. Narciso era por dentro o que era por fora ou por fora o que lhe ia por dentro, confundindo-se, sem fio nem meada, sem pés nem cabeça, muitos Narcisos, muitas peles, muita parra pouca uva...
Pela noite olhava-se no espelho grande, único pertence. Olhava-se e revirava-se, trás e frente, direito e verso, rosto e entranha. Nele fazia estas buscas noite dentro, noite fora. Sem parente e ascendente, não buscava semelhança, plantava parecenças, semeava carácteres, alindava-se, enfeiava-se, vestia-se de gente, vestia-se de multidão, vestia-se ali sozinho, despido de ser, vestido de vento. Mirava o corpo nú. Admirava o corpo nú. Única verdade. Única referência. Decorava os seus contornos como versos de um qualquer poema, estrofe de tronco másculo, redondilha sensual, elegia de outros corpos menos assim, menos assado. Neste namoro solitário, era amante de si mesmo e de toda a gente de quem recolhia pedaços. Colava detalhes, retocava pormenores, poses, repousos e alongamentos.
Narciso penetrava-se e fazia amor desenfreado, sem prazer que o prazer perfeito que vira noutros corpos, noutros leitos, entregava-se na memória da imagem, sem eternizar o momento em desmaio anunciado, no rubor, na volúpia interrompida pela sua solidão. Não havia corpo a juntar ao seu, nem gemido que lhe fizesse coro, nem alma que o seu reflexo perfeito de membros nús e descobertos. Não havia mulher, nem homem, nem ninguém. Não havia nada nem ninguém.
Narciso imagem transparente de águas paradas perguntava ao espelho porque gradualmente se opacizava. Sabia que assim não se daria conta do rumo das rugas e da vida. Mas sabia que jamais ganharia alma de mortal. Esse não sei quê que vinha com o tempo e transpirava calmaria. E nos mitos que sabia recontar, já não havia Adónis que amasse mais que essa alma procurada. Nem Pégaso que o fizesse voar à infância interrompida pelo medo de crescer. Foi no banco do jardim ao entardecer que um dia Narciso se encontrou. Dominó de veludo de outras peças imortais vestido com graça pelos ombros, a contar como grãos de milho aos ouvidos escancarados o fim que dera ao seu corpo, ao seu espelho, como oferta garantida em troca da morte desejada.

hora de voar

A que preço pagarei a liberdade? Sei que é hora de voar. No limiar do que fica e da saudade, penso em ti ainda. Mas não quero voltar à mesma casa todos os dias e vê-la vazia. Não, não me interpretes mal. Aprendi a amar este espaço vago e as horas de recolhimento. Mas o resto mata-me aos poucos. A monotonia. Prefiro outro vazio. O medo que vem da aventura e do recomeço. Esse medo que traz adrenalina, força e fé. Prefiro acreditar que ainda há uma outra vida que esteja também na minha vontade e nas minhas mãos. Creio saber agora o que sentes. Mas não me posso resignar. Procurei tempo demais a solução nos outros e também em ti. Mas, como sempre que procuramos, esquecemos vezes demais que os óculos estão na ponta do nariz. Ali. Estiveram sempre ali ao nosso alcance. Esqueci-me vezes demais da minha autonomia. E agora que o Verão partiu também eu quero mudar. Ficou-me esta alma migratória da minha infância. Anos demais abafada pela cobardia e pela razão? Quem me dera viesses comigo. Mas creio que se ficar também te perco. Que nos perderemos ambos nesta ilusão de que um dia algo vai mudar.

terça-feira, novembro 02, 2004

de que lado?

Passando à porta daquele hospital psiquiátrico, fui abordada por um doente que, pondo as mãos nas grades, me perguntou: Olha, como é a vida aí dentro? - Desci a rua a meditar naquela pergunta, na ténue barreira entre a loucura e a sanidade, na relatividade dos espaços e da nossa compreensão. Hoje, sobrevoando este ninho de cucos, a dúvida instalou-se definitiva. Já não sei como é a minha vida aqui dentro.