quinta-feira, novembro 04, 2004

narciso

Narciso nasceu do jeito de quem nasce por acaso. Acaso de mãe, acaso de pai. Narciso sem apelido que lhe pusessem, Narciso só assim. Nasceu de dentro de si mesmo, na falta de melhor ventre, em dia de tamanho igual à noite, equinócio, solestício, não sei bem. E ao grito de vida, sucedeu-se grito de espanto e ao grito de espanto outros gritos e suspiros, outros medos, outros silêncios. Criou-se como se cria por milagre erva em terra seca, bicho em pedra sobre pedra. Cultivou-se de carinhos alheios, roubando sorrisos de outras crianças, mãos de outras mães. Aprendeu por imitação quando rir, quando chorar. Não aprendeu a sentir que ninguém lhe ensinara. Vestia personagens como ninguém - Narciso alegre, Narciso triste, Narciso rico, Narciso pobre, Narciso velho, Narciso criança.
Narciso que se perdia entre roupagens, entre falas e gestos decorados, entre poses e trejeitos melhorados à circunstância.
Fez escola na rua, apurando engenhos, colocando ouvido e voz. Fez escola de outras escolas, de conversas e palavras, negócios de mulher vendida, contratos de honra muda. Bacharel de enfeites, Doutor camaleão, passava entre as frestas do tempo, ensinando-se o que aprendia de valor, sem valor, sem censura, sem limite, sem fronteira. Narciso era por dentro o que era por fora ou por fora o que lhe ia por dentro, confundindo-se, sem fio nem meada, sem pés nem cabeça, muitos Narcisos, muitas peles, muita parra pouca uva...
Pela noite olhava-se no espelho grande, único pertence. Olhava-se e revirava-se, trás e frente, direito e verso, rosto e entranha. Nele fazia estas buscas noite dentro, noite fora. Sem parente e ascendente, não buscava semelhança, plantava parecenças, semeava carácteres, alindava-se, enfeiava-se, vestia-se de gente, vestia-se de multidão, vestia-se ali sozinho, despido de ser, vestido de vento. Mirava o corpo nú. Admirava o corpo nú. Única verdade. Única referência. Decorava os seus contornos como versos de um qualquer poema, estrofe de tronco másculo, redondilha sensual, elegia de outros corpos menos assim, menos assado. Neste namoro solitário, era amante de si mesmo e de toda a gente de quem recolhia pedaços. Colava detalhes, retocava pormenores, poses, repousos e alongamentos.
Narciso penetrava-se e fazia amor desenfreado, sem prazer que o prazer perfeito que vira noutros corpos, noutros leitos, entregava-se na memória da imagem, sem eternizar o momento em desmaio anunciado, no rubor, na volúpia interrompida pela sua solidão. Não havia corpo a juntar ao seu, nem gemido que lhe fizesse coro, nem alma que o seu reflexo perfeito de membros nús e descobertos. Não havia mulher, nem homem, nem ninguém. Não havia nada nem ninguém.
Narciso imagem transparente de águas paradas perguntava ao espelho porque gradualmente se opacizava. Sabia que assim não se daria conta do rumo das rugas e da vida. Mas sabia que jamais ganharia alma de mortal. Esse não sei quê que vinha com o tempo e transpirava calmaria. E nos mitos que sabia recontar, já não havia Adónis que amasse mais que essa alma procurada. Nem Pégaso que o fizesse voar à infância interrompida pelo medo de crescer. Foi no banco do jardim ao entardecer que um dia Narciso se encontrou. Dominó de veludo de outras peças imortais vestido com graça pelos ombros, a contar como grãos de milho aos ouvidos escancarados o fim que dera ao seu corpo, ao seu espelho, como oferta garantida em troca da morte desejada.

3 Comments:

Blogger Softy Susana said...

"E só na morte encontrou o seu eu, revendo-se - estupidamente - nos outros que roubara."

7:51 da tarde  
Blogger Softy Susana said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

7:51 da tarde  
Blogger Alcabrozes said...

Ora bem, Narciso, Narciso... De momento não estou a ver nenhum!
Ah, já sei o Narciso Miranda! Outro: o "Narciso" na Praia de Carcavelos!
Desculpa a parvoeira...o net pulha

12:17 da tarde  

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