sexta-feira, janeiro 13, 2017

velhice

Hoje, que a vida já decorreu largamente sobre o meu corpo,
Surpreende-me o paradoxo entre o que sou e o que sinto.
A imagem que o reflexo me devolve, é tão díspar do que penso ser ainda.
Aterroriza-me esta diferença. Como há-de doer mais proximamente,
Quando a criança residente num invólucro amarfanhado,
Chorar de pena e dor ante a revolta,
Resignando-se gradualmente a não ser jamais reconhecida,  
Pateticamente repetindo-se:
Já fui jovem e quem me dera sê-lo agora!
Para que entendessem que as mãos trémulas,
A flacidez dos meus membros entorpecidos,
São um logro maldito que acorrenta com maldade
A sombra do que creio ser eterno.

sexta-feira, novembro 11, 2016

adeus

Adeus Cohen. Adeus Leonard Cohen. Passei a manhã a ouvir-te. Suzanne, sisters of mercy, bird on a wire, story of Isaac... E, irremediavelmente, a relembrar. O teu concerto, as noites de amor com a tua música a embalar-me os suspiros. As noites de solidão com a tua voz a dar sentido às minhas lágrimas. É como se partisse um irmão, uma alma gémea, porque tinhas esse dom de chegares tão perto, de te apoderares dos meus sentimentos e de me fazeres perceber que também tu já tinhas sofrido, amado, questionado a vida, o seu sentido, a existência de Deus e da sua misericórdia. Agora que foste não sei bem para onde mas por certo para algum doce lugar, ouvir-te-ei para sempre enquanto eu puder durar. Adeus.

quinta-feira, agosto 25, 2016

ao jantar

Arroz de ervilhas em refogado de cebola e alho. Um toque de goma na correria malandra pelo prato. Tocam-se os garfos, cruzam-se as facas e os propósitos. Enrolam-se os guardanapos e entrelaçam-se os silêncios. Sabes de tudo e eu sei de ti. Brindamos sem palavras à nossa saúde, ao nosso amor. Em como sou feliz desde o dia em que deitaste na minha cama e sem projectos construímos de momentos o nosso enlace. Pensámos nos filhos, na minha, nos teus, todos nossos, conquista arrojada de uma união singular, de uma simplicidade despojada de medos. Verdades acessíveis a quem ousa acreditar. Tu levantas a mesa, eu ponho os pratos na máquina de lavar. Sem escala de tarefas, sombra da minha sombra, luz da minha luz. Braços fortes, peito robusto, olhos meigos, constante da minha equação.
- Gostaste do jantar? - perguntei.
- Estava muito bom - disseste.

quarta-feira, agosto 24, 2016

filha adolescente

Toda a magia. A branca, a negra a rosa? Cobrir-te-ia de um manto transparente e caminharias segura por entre os escolhos. Deixo-te ir vestida de jeans, simplesmente. Uma blusa leve de verão e os olhos azuis. Digo-te adeus, até logo, já tenho saudades. Que dizer deste estado de maternidade permanente? E para que não te pese e sigas indiferente, fico eu encolhida nos meus temores. Falo de ti a alguma gente e mostro os retratos de como eras, de como és, de como te vejo, princesa deste meu reino, arquétipo da minha razão, razão, sentido e rumo. A minha força, o meu calcanhar de Aquiles magoado, o meu final de dia, o meu amanhecer. Quisera ter-te clonado. Parar o tempo e admirar-te eternamente. E penso, fugazmente, que a vaidade é pecado capital, que não te faria em nada diferente porque és, aos meus olhos, a perfeição.

quinta-feira, agosto 18, 2016

notas ao universo

Se fizermos do universo uma guitarra e do tempo cordas de nylon, vibrantes; supondo que a vida é uma melodia e o espírito o seu refrão. A memória é apenas uma ilusão do que julgámos presenciar.
A realidade uma pauta amarelecida que repetimos até saber de cor.
Os nossos corpos são conchas perecíveis e os reencontros inevitabilidades. A morte é a pausa longa de uma breve, silêncio, recomeço.
Não há tempo, espaço ou verdade. Somos o que Alguém nos faz tocar.

quarta-feira, janeiro 20, 2016

vai estar nas bancas

O conto infantil de minha autoria «O dia em que a terra encolheu» vai ser publicado pela Corpos Editora. 
Poderá ser adquirido mediante encomenda nas livrarias Bertrand, Porto Editora e Almedina ou então através do site da Artelogy .

sexta-feira, abril 17, 2015

maturar

Quero acontecer na vida dos outros como um extraordinário e benfazejo imprevisto, como quem tropeça numa carteira recheada ou num dia de sol. Quero ser a poltrona recostada numa janela de madeira branca que espreita à beira-mar. Daquelas janelas grandes com vidros que nem se sentem porque a brisa nos chega ao colo e aos cabelos. Quero ser tão ampla quanto um cobertor a dançar dependurado num estendal. Trazer o cheiro de sabão à roupa ou um beijo perfumado de madeira nos dias mais frios. A revista tonta ou o romance radiofónico na cozinha velha de azulejos da cor do tijolo. Lá fora andam os pombos e eu sou a mão estendida de grão moído e pão demolhado. Sou as transparências e os detalhes de uma infância. A voz que assobia bem longe a chamar à refeição. Quero ser os calções rasgados, os joelhos esfolados e o sopro que acalma a dor. O sorriso maroto de uma inconfidência travessa e de uma promessa cumprida. Transcender-me, metamorfosear-me, mascarar-me e rodopiar, rodopiar.  

sexta-feira, março 20, 2015

life is life

Gostaria de vos explicar como vejo a vida. Desconcerto pela simplicidade a quem acha que isto é um assunto sério. Sérias só são as dores e as mágoas. As rasgadelas e também os arranhões. Ao demais a vida é uma sucessão de momentos. Mais ou menos inesquecíveis, mais ou menos memoráveis, mais ou menos repetidos. Depende dos risos. Depende do sol. Se depender de mim depende de coisas tão simples quanto ter alguém ao meu lado que me queira fazer feliz. Que eu queira fazer feliz. Depende de um gin tónico e de um banho de mar. Ou até de um qualquer farrusco que ronrone e se enrosque no meu colo. De uma fuga à norma. À etiqueta. Depende da surpresa. Depende de mim.

segunda-feira, março 16, 2015

tocam os sinos

No início houve um sino que alertou a minha mãe para a necessidade do meu nascimento. Esse som metálico que ainda ecoa à força de braço em algumas, muito poucas, terras muito pequenas. Nas outras é tudo automático e por isso o som parece perder genuinidade. Fui, literalmente, salva pelo gongo. Ou liturgicamente pela santa padroeira do local. Acredito mais na comunicação inaudível entre o meu projecto e a minha arquitecta. Agradeço o acto, o acaso, o percalço que me trouxe aqui. Tocaram os sinos e eu nasci.

sexta-feira, março 13, 2015

sem tempo

Depois do tempo decorrer. Depois dos sinais recolhidos. Após os esgares e os frémitos. Após o que sempre ocorre quando o tempo decorre. Somos ainda nós. Seremos sempre nós. Os mesmos. Os das conversas havidas e das certezas pueris. Dizem-me que o tempo não existe. É uma teoria. Uma percepção. Uma corda. E o que agarra? O que amarra? Quem mora no contrapeso do outro lado deste nó?

quinta-feira, dezembro 15, 2011

natal

-Este ano também chega o Natal?
Pergunta o menino.
Há ruas e montras iluminadas,
há o fato de um senhor barrigudo,
de brancas barbas e grave riso
que premeia os meninos com juízo.

-Parece que sim.
Diz o pai que tudo sabe.
Que sabe que há séculos, indigente,
entre palhas e com uma estrela por luz,
pregando o amor a toda a gente,
sem roupas, nasceu Jesus.
-O Natal é para sempre.

quinta-feira, novembro 17, 2011

fatiotas

A vida surpreende-me na escolha que faz das linhas com que se cose. E não há rasgão que lhe sobreviva na sua ânsia toda costureira. Cerzindo e remendando. Transformando trapos e farrapos em cordões. Uns com eles se enforcam outros com eles se enfeitam. Outros, ainda, ao cenário se ajeitam, mais vestidos, menos despidos, mais ao léu, mais à moda. A vida, essa, anda à roda entretida, confeccionando divertida muitas e muitas fatiotas. É a moda. São os janotas: mais ou menos idiotas, já se vê!

quinta-feira, outubro 27, 2011

tão frágeis

Chegou o tempo da escrita. Vem com a chuva e com o vento forte. As palavras assobiam amor e frio e vestem agasalhos. É vê-las passar de sombrinha e cachecol. Lembram bonecos de pelúcia rechonchudos ou almofadas de penas. São coisas pequenas e frágeis feitas para o carinho de quem as ama. Como eu amo as palavras! Gosto do seu som e divirto-me a juntá-las. Embalam-me o sono e o dia, vestem-me os ouvidos com a sua suavidade. Contemplo-as em frases que ressaltam nas vidraças. Largando mensagens e provocações, numa sensualidade que transcende quem as usa. Passo horas silenciosas a vê-las crescer e ganhar contornos. Um dia hei-de usá-las de uma forma completa. Hão-de sair de mim como sempre quis: interminável torrente de poesia.

segunda-feira, outubro 17, 2011

coisas simples

Há uma incontornável ternura em adormecer abraçado enquanto se espera a embriaguez do sono. Surpreendente como a liberdade se manifesta na corrente de dois corpos apertados e não na vastidão de uma cama vazia. As essências concentram-se em espaços confinados. Revelam-se, afinal, tão acessíveis. A modéstia do desejo, do ardor, transporta-nos muito para lá do que um dia acreditámos ser possível. Porque a nossa razão jamais alcançará certos voos. E só quando logramos perdê-la realizamos quão redutora é a sua dimensão.

stuart staples

Há sinos vibrantes na voz deste senhor.