segunda-feira, novembro 28, 2005

chá para dois

Ontem atei-te à minha cama e fui fazer um chá. Gosto de tisanas levemente açucaradas, feitas a preceito. Verti-a no bule e aspirei-lhe o aroma a maçã e canela. Gosto que me esperem num silêncio agitado e de regressar cinco minutos após o tolerável. Adicionei-lhe um pouco de água fria. Já abrira por completo e podia ser coada. Servi duas chávenas. Uma pousei-a no teu peito. Não houve palavras apenas um olhar de cómica reprovação. Esquecera o farrapito de leite e talvez os nós. É bom que nos esqueçamos de algo para que possamos ser lembrados. É boa a pequena imperfeição do detalhe para que apreciemos a totalidade do que se nos oferece. É o pormenor que talha a diferença entre peças e pessoas e é a irregularidade que as torna únicas, preciosas. Fizera laços. Opção romântica e talvez feminina, como deitara fora o pau de canela para que não intensificasse em demasia o sabor da tisana. São escolhas condicionadas à experiência. Por detrás de cada impulso mora o tempo de reflexão acumulado. Os cheiros que não se misturam e os sabores que não se adulteram na boca. Os tempos de espera e os compassos da urgência. O calor suportável, a temperatura exacta no contacto dos corpos para que se opere uma suave transferência até ao equilíbrio de ambos. Os laços puxam-se e desatam-se quando se quer, até podermos estar manietados sem nós nem laços. Imaginamos então o corpo imobilizado e o frémito na liberdade do que se move e renegamos a chávena apetecida apesar de ela estar ali, à curta distância de um gesto e de uma vontade. Verti o leite que faltava no chá. No teu chá. E observei que o bafo que te embaciava os olhos semi cerrados eram depois as gotas nos meus seios. Foi muito depois que quiseste saber como se fazia. Toda a história das correctas proporções, até à completa leitura de um novo momento nas folhas de chá submersas.

sexta-feira, novembro 25, 2005

deus esse eterno acordado

1. títulos alternativos: "preces malditas"; "dias com muita pinta"; "minha casa meu cárcere"; "a insónia divina"; "sonho dela, pesadelo meu".
2. estrutura do post: aviso; analepse; contexto; lamúrias e apelos; pragas e apoteose final.
2.1. aviso
Atentai pais nas preces de vossos filhos pois Deus não dorme.
2.2. analepse
Qual Martin Luther King, soube, há não mais de quinze dias, que a minha filha tinha um sonho. Fui buscá-la ao infantário e a sala estava mais vazia que o costume. Abandonada por várias irrequietas crianças, a educadora parecia-me mais em paz que o habitual, mais dada ao diálogo e ao relato dos acontecimentos - Foram mais sete para casa com varicela - disse-me com um sorriso verdadeiramente iluminado. Olhei para a minha filha procurando pintas. Nada. Apenas um ar tristonho e desiludido com a sua saudável existência. Ah, - acrescentou a educadora mesmo à nossa saída - a sua filha quer ter varicela.
(o diálogo é a transcrição fiel das citações proferidas)
-Queres ter varicela? Mas olha que é uma grande chatice!
-Mas ia para casa contigo, podia ver o Disney todo o dia e, mãe (este "mãe" é dito com uma entoação particular, mais forte, mais apelativa e suplicante) todos os meus amigos têm varicela!
-Pois, e se todos os teus amigos partirem a cabeça, tu também queres partir, não? Não houve resposta. Só um olhar estupefacto que, me pareceu, indiciava que sim...
2.3. contexto
Quem me tem lido, e deixo aqui o agradecimento com o apelo à fidelização, sabe que estes últimos dias não têm sido propriamente fáceis. A miúda veio para casa uns dias depois do relato da analepse supra, mas com uma otite e amigdalite. Nada de varicela. É certo que na primeira noite, cerca das cinco da manhã, quando acordei com a tipa a queixar-se de sede e calor, ela ainda teve a presença de espírito, apesar dos 39ºc de febre, para me dizer que tinha uma comichãozinha na perna, e para me perguntar com um arzinho esperançoso, se não seria a ambicionada doença.
Depois, foi o normal desenrolar dos factos: ela ficou boa e eu adoeci. Estou ainda com uma voz de bagaço rasca e com uma tosse que afasta, a medo de contágio, quem por mim passa. Apesar deste estado mais ou menos decadente, fui trabalhar. Sabem lá quão leves são as tarefas profissionais depois de vinte e quatro sobre vinte e quatro com a minha filha...
Hoje toca o telemóvel antes da hora de almoço. Estou? Mãe? (tratam-nos a todas por mães, tipo Sr. Vitor do gato fedorento, só para facilitar) Fala do colégio, é para dizer que a sua filha está com varicela. Está tão contente!
Falei com o pediatra, corri para a farmácia, fui buscá-la. Abro a porta da sala e vejo-a rodeada de olhares curisos, exibindo vaidosa umas borbulhas nas costas e contando em voz alta e convincente, o relato de uma queda em que esfacelou todo um joelho vai para mais de um ano... Olha para mim. Olho para ela. Vês mãe o meu sonho realizou-se, pedi a Deus e Ele deu-me a varicela!
Deus não dorme. Essa omnipotente Criatura Sagrada teve um tempinho para ouvir as preces da minha filha! Quanto a mim, assim que acabar este post e for para a cama, já vou ter uma conversinha com Ele!
2.4. lamúrias e apelos
Já ouvi muita coisa, uns falam-me em quinze dias outros, talvez adivinhando o desepero e o estado pré-depressivo na minha rouca mas ainda expressiva voz, diminuem a sentença para sete ou oito. Digam-me vós que me lêem, da duração deste meu cárcere, do quão longo será este calvário, verdadeiro purgatório em vida de uma desesperada mãe agrilhoada ao sonho nefasto da sua filha. Venham visitar-me! Mandem-me e-mails!
Breve apontamento: para os mais curiosos pelos dados estatísticos refere-se que a contagem ia às 23.00 horas (hora local) em 24 borbulhas assumidas e treze nasciturnas.
3. pragas e apoteose final
Passem este post a pelo menos dez amigos nos próximos dez minutos ou contrairão varicela!
dez amigos- a vossa obrigação
quinze amigos - pelo menos uma visita por dia! Oba, oba!
mais de quinze - não exagerem que também tenho mais que fazer (por Caladryl nas borbulhas) e não tenho casa para receber tanta gente.
(a leitura deste post não é talvez aconselhável a católicos ferverosos e incapazes de compreenderem a ira de uma mãe revoltada com a insónia divina)

segunda-feira, novembro 21, 2005

sonhos e dias

Ela penteava-se de fronte do espelho, olhando para lá da sua imagem, esquecendo os seus cabelos revoltos, fixando o futuro, descodificando os dias e os acontecimentos. Para lá do que via e pressentia, cruzava os braços ao destino, entristecida pelos reflexos solitários e pela espera de uma sorte diversa. Logo atrás, reflectia-se no espelho a cama de casal e, parecia-lhe, os corpos que a habitavam ainda. Entregava-se à recordação de um outro Inverno, quando a paixão revolucionara colchão e lençóis fazendo-a sentir-se completa. De algum modo a completude era passageira, apreciável por momentos em que se toca o infinito, para logo após se desvanecer em pequenos fragmentos de memória. Cansava-a saber demais, ter tido no corpo o Universo Divino para reconhecer agora a trivialidade do sexo. Questionava a ironia do conhecimento, a lógica da apreensão da felicidade e a sabedoria da intimidade do seu corpo e das suas exigências. Poderia bem viver a solidão, agora que lhe entendia os contornos e o fantasma da paz que comportava nas entranhas. Poderia viver de metades, arquitectando a espaços o sólido edifício da plenitude, mas não conseguia alienar o sonho que se prometera, com receio de se banalizar, de se acobardar, de se desgostar de si mesma. Difícil é a resignação viver paredes meias com o sonho, porque este transborda em força e inocência, desmascarando as lágrimas da insatisfação num qualquer momento de entrega. Impossível é matar a alma que ganhou asas e deixá-la fenecer, inanimada dentro do corpo. Disfarçar a vida com a morte, a realidade com serigrafias tão perfeitas que a sua imagem ao espelho fosse ainda uma obra de autenticidade.

quinta-feira, novembro 17, 2005

relativo e não relativo

Como a gota é dilúvio, como a tempestade é uma brisa, como o grito é sussurro, como a paixão é esquecida, como um dia demora, como um ano se perde, como a clarividência se turva e a fé se esmorece, como o amor se aprende, como um gesto se valoriza, como amizade é eterna, como o que importa é a vida.

sexta-feira, novembro 11, 2005

cristal líquido

Terna a sabedoria dos pequenos momentos,
cristaliza-se a sorte num gesto de loucura,
numa jura que se oferece num repente,
pela brevidade da vida, essa nossa eternidade,
efémero prazo que assim se dilata,
à irrealidade de ser por todo o sempre.

Terna a inocência das grandes promessas,
liquefaz a mentira em soro de verdade,
num suco que sorvemos tão avidamente,
em segundos de sede e voracidade,
que é todo o destino, a realidade,
que em nós se estreita e se capta.

Terna a vontade de viver tão plenamente,
na intensidade assustadora que nos queima,
viver ardendo, sorvendo a seiva,
de um amor que nos deixe delirantes.

Que sabedoria cristalizamos no impulso,
no siso ou mentira, desta insensatez,
que poção nos embriaga uma e outra vez
na constante intermitência da ternura...

quinta-feira, novembro 10, 2005

pelo Natal

bombons do destino. Eu tenho o grato prazer de ter esta miúda por amiga.

terça-feira, novembro 08, 2005

a cada um o seu denário

A manhã começou aparentemente igual. Corre que corre, lava que lava, veste que veste. Fruta para a pequena, ração para os tipos de pelo, veste o casaco, entra no carro, põe a mesma música - oh, mãe não é essa - ouve-se a música três vezes seguidas, deposita-se a tipa na escola, beijos e até logo. Respiro fundo! Ah, a doce calmaria do emprego! Café no bar da instituição. Chegam os primeiros colegas. Uma vem com ar de quem quer algo. Depressa descubro o que se passa. Nomes. Ela quer nomes e moradas. Voluntários amigos para uma demonstração de um aspirador. De imediato, começo a tentar perceber para mim mesma se sou de facto assim tão amiga daquela pessoa. Não sou. Pelo menos ao ponto desta tortura. Já passei por este filme. Já assisti por compaixão para com o próximo a três demonstrações de aspiradores. Dá dó ver o ar animado da feliz compradora. Está ainda na fase do deslumbramento. A paixão inicial pela máquina exemplar que facilitará o trabalho doméstico... Ainda ouso dizer que a máquina é boa mas pouco prática de montar. Diz-me que não, que é um tirinho, que descobriu que vivia no meio da porcaria e que agora toda uma nova vida se desenha ante de si... E os acessórios? Como vai ser bom limpar os estores e todos os recônditos sítios onde o pó se acumula à revelia dos normais aparelhos de limpeza. Olho para ela. Tenho pena. Não faltam vozes que a secundam. São as vozes das mais ou menos recentes vítimas que já estão noutra fase, a fase a que chamo a do reavivamento. Aquelas que já precisam da energia dos imberbes para prolongarem a sua paixão esmorecida. E eis que saí da boca habituada a lugares comuns de uma colega gaga, uma preciosidade digna desta fase do reavivamento: Esse as.. aspirador é uma ver... verdadeira do...dona de casa! Valha-me Deus! Custa-me este papel que me cabe. Eu que já estou na fase divórcio e do adultério consumado... Comprei um aspirador pequenino, banal, daqueles baratos. Um que apanha o indispensável mas que se monta e arruma depressa. Um aspirador digno da minha preguiça e da meu conformismo. Nunca fui uma mulher ambiciosa no que respeita às prendas domésticas. Tenho o outro, a máquina perfeita mas infernal que quem dera se auto montasse e me substituísse. Falta-me o tempo e a pachorra para o montar. Tirar aqueles tubos enormes, encher o depósito de água, por e tirar acessórios específicos para o chão, carpetes, móveis, bibelôs e outras superfícies que clamam em silêncio pela limpeza... Arranjei um amante. A este trato-o com a facilidade que o amor exige. Pouco me pede. Pouco lhe dou. Faz-me feliz e é o que importa. Levanto-me. Não dou o meu nome. Que me desculpem estas jovens e imaturas apaixonadas, mas para mim já há muito que se quebrou o encantamento de uma relação árdua, exigente e dedicada.

quinta-feira, novembro 03, 2005

filmes violentos

Tê-la-ia mandado deitar, não quisesse eu ver o fim à coisa. Perde-se tempo na hora da deita. Hora de beijos e de histórias, tempo de acomodar na mesma cama gatos e peluches, para que haja um espaço para ela se enroscar. Eu estava encolhida no sofá, unhas na boca, seguindo nervosa o herói do filme. Ninguém parecia acreditar nos seus bons propósitos, só nós, eu e ela, que devorávamos a acção alvoroçadas, já abraçadas uma à outra tal era o meu pavor. A minha consciência gritava alto que eu não a devia de deixar ver estes filmes, mas a miúda parecia bem mais calma do que eu. De resto, estava muito mais curiosa com a minha reacção do que propriamente com o desenrolar do filme. No laboratório, iam submetê-lo a experiências horrorosas. Tinham-no preso, enjaulado. O parvalhão do mau da fita usava bata branca e era ajudado por mais dois imbecis perversos como ele. Estava na hora. A música não ajudava nada. Anunciava o perigo. Tiraram-no da prisão e levavam-no à força para uma morte cruel. Merda de filme! Não pude evitar uma lágrima... Mas, quando tudo parecia perdido, atira-se o dono da clarabóia. Também era o mínimo, fora ele que o pusera nas mãos do assassino! Aterrou em cima do mauzão e espetaram-se nele todas as pérfidas agulhas com que queria maltratar o Beethoven. Depois foi tempo de alívio e vingança. Para meu gáudio, o pequeno rafeiro, companheiro do São Bernardo, ferrou-lhe os dentes no meio das pernas, ali onde mais dói, enquanto todos os outros felpudos prisioneiros eram postos em liberdade. A tensão acalmou... Vês mãe, eu não te dizia que isto acabava bem? - Para mim chegou, não volto a deixar a miúda ver estes filmes violentos!

quarta-feira, novembro 02, 2005

vida breve

Ontem comprei contrariada um Tamagochi (é assim que se escreve?) para a pequena rapariga que comigo compartilha a casa e os dias. Sempre achei que era uma estupidez ter uma coisa daquelas. Todavia, procurei ensiná-la que o "bicho" precisava de comer, de brincar, de apanhar vacinas, que lhe apagassem a luz para dormir, que lhe lessem uma história para o entreter, enfim, um sem número de cuidados que me pareceram exagerados e perfeitamente ridículos. De todos, ela reteve a vacina. Deu-lhe várias seguidas, convicta de que esta era a parte mais importante para o bem estar da criatura virtual. Já mais à noite, ela deitou-se e adormeceu com ele entre as mãos. Uma estranha inquietação tomou conta de mim. Levantei-me do sofá e fui até ao quarto da moça. Entrei com cautela e surripiei-lhe o Tamagochi. Tadinho... Tinha feito cocó e tinha fome, muita fome. Dei-lhe de comer e limpei-lhe a casa, pu-lo a brincar e, pela meia-noite, apaguei-lhe a luz para que dormisse descansado. Depois, tratei dos meus gatos e fui tapar melhor a minha filha. Pela manhã despertei com o som do dito "bicho" a reclamar atenção. Voltei a dispensar-lhe os cuidados mais básicos e apressei-me a colocá-lo na cama da rapariga para que o visse ao acordar. Dei de comer aos meus gatos e à minha filha. Lavei-a, vestia-a e fui levá-la à escola com o Tamagochi pendurado ao pescoço, mas, mesmo antes de chegar à escolinha, ouvi uns barulhos estranhos no banco de trás... - Olha mãe ele está a nascer! Não, filha, - retorqui - deve querer qualquer coisa...
Assim que parei o carro agarrei no Tamagochi preocupada. Ela tinha razão! Ele estava a nascer. Era outro. Aquele havia morrido e nascera um outro. Aquele, coitadinho, havia morrido porque ela não tivera nenhum cuidado com ele. Teria sido à fome? Ou quem sabe queria brincar, ou talvez precisasse de uma vacina... Como é que em apenas uma hora ela tinha morto uma criatura a quem eu tinha prestado tão atentos cuidados? Fiquei triste. Apeteceu-me tirar-lhe o Tamagochi do pescoço e trazê-lo comigo. Estes brinquedos são mesmo perigosos - concluí depois, já mais refeita - fazem sofrer os corações mais empedernidos!