quinta-feira, setembro 30, 2004

o comboio

A paixão é como um comboio de alta velocidade que nos transporta, rápido e potente, ao destino desejado. Deixamos passar desinteressadamente o que nos rodeia como meros flashes difusos: os rostos, as casas, a paisagem - na única expectativa do nosso destino. Deixamo-nos levar ao ritmo frenético dos reencontros, valorizando ou desmerecendo o tempo que nos aproxima ou afasta de quem amamos. Atropelamos os problemas e superamos as distâncias, certos de que pisamos a linha correcta e deixando ao sabor de outrém a gestão do nosso caminho. E só, quando em algum apeadeiro, se nos abranda a marcha, questionamos então o que nos fez escolher aquela carruagem...

terça-feira, setembro 28, 2004

ai que comichão...






posts que me põem assim!






no reino dos flamingos


Reunidos em assembleia geral discutiam os assuntos da comunidade. Cada qual, no seu ar elegante e equilibrado, inspirava altivez e poder. A escolha dos eleitos estava à porta, ou melhor, ao tempo razoável de distância que possibilitava a animada discussão sobre a distribuição de cargos. Entre golpes palacianos, decidia-se da ascensão e queda dos circundantes. Cuidavam os desatentos e adormecidos que ali se tratava com elevação de filosofias, democracias, ideologias e quanto muito de algumas demagogias. Sabiam os demais que não era assim. A qualidade das águas do lago continuava deplorável. A outrora transparência que animara a migração para aquelas paragens há muito desaparecera. O líder apelava à serenidade. Nada como a serenidade para a saudável manutenção do estado actual que, dizia, ao menos era preferível ao que de pior pudesse vir.
Entre os desatentos, andavam os líricos. Olhavam-nos com graça e complacência porque animavam algumas tardes mais monótonas e emprestavam um colorido especial, pitoresco, ao grupo decisor. Todavia, entre esses líricos, havia por vezes os que questionavam demais, perguntavam demais e nem sequer se entendia ao que andavam...
Quando assim era, juntavam-se todos em torno do mesmo propósito, a bem da dita serenidade chamavam-nos à razão, sim porque existia uma razão comum: a redistribuição entre os mesmos do poder. O pior é que os pobres coitados às vezes não percebiam ou pareciam querer perceber da nobreza do que ali se discutia. Normalmente, tudo se resolvia com uma bicadela nas penas ou com a honra de poderem ter acesso a privar com a cúpula e, quando assim era, tudo estava resolvido. Se acaso insistiam, irredutíveis, nas suas tontas quimeras, eram excluídos da migração que se avizinhava e condenados a errarem sós por lagos menores sem a protecção que vinha da coesão do grupo.
Esta era pois a altura certa. O momento de se calarem os bicos aos chatos e de se prometerem mais altos vôos aos demais. Quando chegasse a próxima estação, elevar-se-iam sempre elegantes pelos ares.

sexta-feira, setembro 24, 2004

acompanhados

Demorou-lhe tempo a entender a diferença entre espaços e rumos. Não há maior proximidade que a que vem do mesmo caminho. Os passos nunca se sobrepõem. Cada corpo, na sua individualidade, toma o seu espaço, ocupa-o, chama-lhe seu. Nem por isso caminham distantes os que percorrem os mesmos propósitos. No amor é isto que importa. A certeza da similitude e não da coincidência. A certeza da companhia apesar da distância.

quarta-feira, setembro 22, 2004

malmequer

Deliciosamente simples sobre os campos, salpicos bi-colores no verde da erva que se espraia até longe, já perto do casario. Caule que baila ao vento ainda tão quente apesar do fim de tarde, pétalas solitárias amarradas ao botão amarelo onde pousam abelhas gulosas. Contas feitas e desfeitas sempre certas: mal me quer, bem me quer, muito, pouco ou nada.
Tanto saber, tanta magia numa flor. Adivinha, cartomante de destinos tão frágeis, tão tementes de má resposta. Mal me quer. E a mim quem me quer assim ou de outra maneira? Diz-me tu malmequer por mim despido, quem merece afinal esse dom de sacrifício? Com que graça colorida salpicas atrevida esses campos. Não haja por mim mais ninguém por quem queira eu tirar-te a vida.

terça-feira, setembro 21, 2004

ao homem, à voz, às palavras


Ao homem sensual,
à voz segura e quente,
às palavras mágicas de poeta,
à esperança de um dia ouvir:
"I'm your man"
e às loucuras que assim se cometem.
Parabéns.


imagem e sombra

Já lhe dissera que era uma sombra
Sombra de areia, pálida, tímida.
O abandono transfigura: Imagem em sombra.
Desmantela o puzzle paciente.
Mas nos intervalos da construção e do abandono, reservara as peças centrais.
E ainda na sua sombra se reconhecia a reconstrução latente.
Dessas peças que guardara faria de novo a sua imagem.
Arrogante, altiva, indiferente.


eterno retorno

A lassidão do corpo, dos gestos, do pensamento.
Porque a conheço. Não me assusta. Prepara-me.
A solidão, o recolhimento, a poesia desta nostalgia.
Aceito-a. Escrevo-a.
Os olhos parados, baços, para além dos objectos.
As asas que me soltam e isolam.
O salto felino, ágil, inesperado.
E o sorriso devolvido. Por quem me vê voar.
E a melancolia, eterna, outra vez.
E outra vez ainda.

sexta-feira, setembro 17, 2004

de olho vivo

Atenta às silenciosas mudanças do meu espaço,
às vírgulas que se desenham a cada recusa,
ao arrefecimento do Outono já vizinho.
Parada à espera que a sombra se mexa,
ou que esqueça a sua imobilidade,
ganhe ela vida própria e vontade
mas antecipo, cautelosa, que se esfume.
Galgar tudo, superar e suportar
até que a vida ou morte nos separe
possa a força conquistar fragilidade
possa ser ela agora a vir buscar-me.

ao espelho de Vénus

Rubens pintou Vénus em toda a sua magnificência. Corpo amplo, alvo, traços femininos revelados pelo olhar de soslaio ao espelho que a reflecte. Deusa do amor que por certo repudiava as dietas amalucadas às quais hoje em dia quase todas as mulheres se submetem com vista a ficarem magras de mais, a vestirem um acriançado 34 de calças quase sempre desajustado à morfologia do seu corpo, a copiarem as manequins escanzeladas vestidas por homossexuais frustrados que nem sequer apreciam a beleza feminina. Ponham os olhos no vosso espelho e descubram a Vénus que há em vós.

Este post foi inspirado numa missiva nada doentia de um amigo desaparecido da blogosfera.


quinta-feira, setembro 16, 2004

o dolo e a estupidez

Desculpar-me-ão os leitores deste blog por este post que foge ao habitual contexto. Mas, um blog é antes de mais um espaço de expressão e que, cedo ou tarde, revela traços de quem o edita. Porque é mais forte a indignação que me move do que qualquer preocupação pela eventual homogeneidade do Sol&Tude, aqui fica mais um retrato de um País que é o nosso. Saberão porventura com maior ou menor profundidade e/ou rigor técnico o que é o dolo e do que se trata quando se fala em "agir com dolo". Pois bem, o que é espantoso é quando o sistema legal que nos rege, ao exigir o dolo como condição necessária para a condenação de alguém pela prática de determinados crimes, como é exemplo o de gestão danosa, acabe por proteger e acarinhar a negligência grosseira, a meu ver indesculpável, dos titulares de cargos políticos. Pessoas estas que, pelo facto de exercerem estes cargos públicos, deveriam de ter responsabilidades acrescidas pela forma como procedem à gestão do dinheiro todos nós - Mas, não é assim! Na verdade, qualquer atrasado mental que haja sido eleito ( e não me venham dizer que não é possível porque infelizmente todos sabemos que o é!), pode inocente e nesciamente praticar ilegalidades atrás de ilegalidades que nem por isso verá o seu mandato ser-lhe retirado. Porquê? Porque neste belo País à beira mar plantado não basta ser-se assumida e publicamente incompetente para se ser penalizado com a imediata retirada de mandato. Não, não é suficiente ser-se uma besta porque isso não é crime. É preciso ser-se mesmo um filho de uma senhora pouco recomendável (ou seja ter-se mesmo a intenção criminosa de lesar o erário público) para que possa haver condenação pela prática de actos de gestão danosa e, então sim, podermos ter a pretensão de ver o incompetente ir para casa.
Resumindo e clarificando pela troca por miúdos:
Idiotas, néscios e incompetentes deste País, se têm mais de 18 anos e ambicionam o exercício de cargo político, juntem-se a um partido qualquer e concorram. Há sempre um lugar que espera por vós. Se fizerem trampa da grossa, não faz mal nenhum porque toda a gente perceberá que vocês são só parvos, incompetentes, idiotas, mentecaptos e pobres coitados e não assumidos filhos da puta. Como tal, toca a estourar o dinheiro da malta à fartazana que ninguém vos leva a mal!
Força Portugal!

quarta-feira, setembro 15, 2004

de onde espreito

Difere de ontem a temperatura, talvez a luminosidade mas não as expectativas. Essas, quando as havia, transportava-as de um dia para o outro numa gestão racional de víveres. Pelo Inverno passado esgotaram-se. Saboreei a última num misto de gozo e pavor. Esse gosto de tudo nada prendia-se como melaço ao céu da boca. Esgotou-se por fim já sem qualquer surpresa. Desde então diferem outras coisas, sorrisos, caras, atitudes. Já mais nada difere e assim é como se no fundo nada diferisse. Esta certeza da igualdade dos tempos por vezes conforta-me outras nem tanto. Se calhar já nem faz sentido falar sobre tudo isto mas também pouco mais me resta para falar. Com as expectativas foram-se também as histórias que vinham agarradas aos sonhos e que eu semeava de personagens e alegrias diversas. Apaixonei-me por essas personagens, dei-lhes vida, cor, rubor de faces, dei-lhes tempo, dei-lhes de mim. Delas recebi o que sempre se recebe das miragens, força para prosseguir até ao preciso momento em que se desvanecem. Nesse deserto, palco das minhas histórias, povoei lugares, tendas e oásis, vesti vestes transparentes e fui outras mulheres. Nem a saudade me resta porque sei que tudo teve o seu tempo e foi tempo de engano. São suaves os enganos, quantas vezes mais amáveis do que as verdades. Das verdades vivo eu agora, a realidade nua e crua sem qualquer graça e encanto. Não meço o rigor da vida ou a precisão do fiel dos dias entre loucura e sanidade, mentira e verdade, encanto e desencanto. Trocaria de resto estas verdades por outras mentiras. Mas já não posso. Já não sei enganar-me como antes. Esta é a lição da vida. Desaprendermos ao ponto de nada mais querermos aprender, ao ponto em que nos desapegamos porque nada mais há que nos agarre à força do sonho. Desde esse Inverno que vejo com bonomia a passagem das estações que se sucedem com sentido para quem ainda acredita. Para mim é uma ironia pérfida desse Deus que lá do alto nos mistifica com esta suposta dádiva da Terra. Entre flocos de neve e banhos de sol, caminham os corpos entre si, esbarrando-se, misturando-se, unindo-se, evitando-se, como se algo pudesse mudar por isso. Da minha janela, percebo que é indiferente.
Esta sabedoria trouxe-me a morte. Dos anos em que acreditei na vida e no percurso do conhecimento fica a saudade que se tem de um bom livro que não iremos contudo reler. A nostalgia de um bom filme que termina entre as vozes que distantes e infantis comentam o argumento. Entre o saco de pipocas e o sorver das colas estarei eu, de onde espreito, a profetizar a última viagem.

terça-feira, setembro 14, 2004

a passadeira mágica

Era uma vez uma menina que conseguiu uma passadeira mágica. Vamos ouvir:
Naquele lugar distante do mundo e das gentes pouco mais havia para fazer que sonhar. Ora o sonho, como se sabe, é tarefa difícil e arriscada. Exige método, imaginação e algumas cautelas essenciais. O principal risco quando se faz do sonho ocupação é não nos deixarmos prender e enlear a ponto de já não sabermos qual a fronteira entre a realidade e o imaginário.
Ali, em terra despovoada, era ainda mais fácil que em outro qualquer lugar a mistura de personagens curiosas que se passeavam a todo o instante espreitando sobre o ombro de Carolina. Ela, já muito habituada a estes acontecimentos, cumprimentava com cortesia todos os que se atravessavam no caminho enquanto cumpria as tarefas diárias. No carreiro que serpenteava até à entrada de casa, brincavam gnomos, fadas e até feiticeiros e príncipes. Acontecia simplesmente que por serem fruto de si própria eram todos eles simpáticos e cordatos pelo que dava gosto perder horas a falar-lhes e a conhecê-los.
Nem de outra forma poderia ser, pois então (!), porque Carolina desconhecia a existência do mal. E não dava sequer para contestar esta realidade, dizendo que isso da maldade nasce connosco, que é coisa própria do ser humano. Com Carolina não era nada assim! Com ela não nascera o mal, nem dele tivera até à data qualquer conhecimento.
Mas deixemos estes “entretantos” e expliquemos o porquê da passadeira que um dia se estendeu até à porta de sua casa.
Acontece que Carolina veio uma tarde a tropeçar numa figurinha curiosa que dizia ser alteza e que por ser da realeza jamais punha pé em terra suja. Acompanhava-a em todos os seus passos uma mágica passadeira vermelha.
Dizia esta alteza que outros da realeza mais real, por não serem tão cuidadosos andavam sobejas vezes de pé sujo de lama! Ora onde já se vira isto! Pés sujos de lama, que porcaria!!! Pois com ela jamais um grão de poeira lhe conspurcaria os sapatos de cristal ou mancha de lama se lhe colaria às finíssimas meias de vidro tecidas.
Carolina que também nada percebia de nascer alteza, nem de sapatos de cristal ou meias de vidro, agradou-se todavia da limpeza que parecia transparecer desta forma de andar sobre tapete mágico. Pés alvos que à noite se deitariam em cama lavada para adormecer nos sonhos onde não cabia o mal.
Com estas ideias andou muita atarefada dias e noites a fio. Até que certa manhã, entabulou conversa com um pequeno duende de gorro vermelho e resolveu confessar-lhe os seus desejos. Este duende do gorro vermelho, sabedor das coisas mundanas, achou de muito acerto a vontade de Carolina. Achou mesmo que era muito bonito andar de pés limpos, que era próprio de gente boa e de bem, coisa rara ao que dizia! Vendo tanto desejo na alma de Carolina, na alma limpa com que nascera como quem nasce realmente real, está-se mesmo a ver o aconteceu...
Com mágicas artes, ainda o primeiro bocejo de Carolina se transformava em ai de espanto e maravilha e já se via estendida a magnífica e fofa passadeira vermelha que a acompanharia para todo o sempre nos seus passos.

sexta-feira, setembro 10, 2004

efeitos musicais

Ao som do magnífico "my oblivion" dos Tindersticks, parti a pedalar na melhor companhia do mundo (vou evitar o link) praia fora... Estávamos já quase enrolados na areia, com as "pasteleiras" cuidadosamente encostadas a uma rocha, quando muda a música... Pat Metheny... Hum... estão a ver? E, tal como na vida, também no sonho tenho esta mania de prolongar o que me sabe bem. Esqueci-me pois da curta duração desta faixa e acordei sobressaltada com o "turning japanese" dos Vapors. Bolas! Ainda tentei mudar a música muito depressa, agarrar o sonho onde tinha ficado mas era tarde demais... Imaginem pois a desgraça quando deram comigo (inconsolável de resto) aos saltos no gabinete... Há músicas para tudo e esta faz-me PULAR!!! Deixo-vos com o velho "come on Eileen" na versão dos Reel Big Fish. Bolas, bolas, bolas!!!

à francesa


Está de ver que hoje o dia vai ser difícil...
Lá vem a chata da Maricota com a mania que é a gaivota mais gira das redondezas,
vou fingir que não a vi e sair de fininho...




quinta-feira, setembro 09, 2004

nunca é tarde

No alpendre, sob a luz amarela do candeeiro, Maria relia antigas cartas de amor. Fazia-o com emoção renovada, entre sorrisos e pequenas lágrimas de saudade, conquistando as sucessivas linhas de letras com apetite voraz. Alimento da alma, na vida faminta de emoção, aquelas cartas eram máquina de tempo, transporte às brumas do passado, à jovem que fora, parecia-lhe por vezes há muito tempo e outras apenas há breves dias passados distraída pelas horas e rugas que serena e pausadamente nela se haviam instalado. Na sua face já não se lia o que fora, talvez ainda no seu porte, a altivez em tom de adivinha deixasse traços mais frescos de quem merecera tantas linhas de amor devoto.
Na sua vida sempre fora fácil deixar-se amar. Prendiam-se-lhe as pessoas e as suas emoções como se na sua versatilidade, houvesse traço comum com a humanidade. Todos nela se reviam e ninguém se lhe assemelhava porque, quando cuidavam já lhe serem muito iguais, Maria partira por outro alguém. Ela amara imagens como ninguém nunca antes, belos fantasmas de homens reais, cuja realidade, por teimar em vir ao de cima, desfazia o sonho.
Fazia e refazia o seu lar na constância de amor novo, na expectativa renovada do acerto da sua paixão até ao dia em que, como que por ironia, o destino se lhe virou às avessas perante aquele a quem chamou de príncipe encantado.
Hoje, milénios depois, debaixo daquele alpendre dava balanço a essas emoções, às cartas que guardara e às escolhas que fizera. Lá de dentro, ouviu-se a voz do homem que chamava por si. Já estavam atrasados para a cerimónia. Apesar das rugas e do passar de tantos anos desde o dia em que ele lhe tomara conta do coração, sempre soubera ser este o seu rumo.

segunda-feira, setembro 06, 2004

outro juízo final


Importas-te tu afinal com as casas que te constróem? Com a beleza dos templos onde te dirigem rezas e súplicas? Vês tu nelas por acaso a magnitude da devoção? Por onde andam os teus olhos e as tuas leituras? Não deitarias tu abaixo com a força de outros tempos as paredes abandonadas por aqueles que por ti se sentem abandonados? E como podes afinal responder em silêncio a tanta dor, a tanta dúvida...Não serão já suficientes estes anos de solidão? Quando te fartarás deste palco assombrado, templo de deuses menores onde ainda alguns subsistem na tua espera? Como será, pergunto, o Teu juízo final, nas pobres mãos de todos nós!





o segredo



Sou tão frágil quanto as mãos que me cuidarem,
tão leve quanto a alma dos que me amarem,
tão belo quanto os olhos que me olharem.
Sou, pois, o eterno segredo da vida, da beleza e do amor.




hoje venho no jornal

A multidão rodeava o seu corpo, efectuando prognósticos e avaliações sobre o seu estado. A ela, pareciam-lhe abutres vorazes que transgrediam o seu espaço vital. Deixava-se estar caída porque lhe faltavam as forças para fugir. De resto, fugir para quê? Para onde? A sua vida desenrolava-se como um fio de um novelo de lã, impossibilitando a perfeição dos arremates. Só ela conhecia o que ali a levara, os nós sobre nós na meada dos dias, os apelos inúteis que ninguém parecera ouvir. Como sempre na história da humanidade, falar-se-ia agora do irreversível, do que poderia ter sido mas não foi.
O metro estava parado há já mais de meia hora e o seu corpo na linha parecia irritar os apressados. Curioso como nunca antes irritara ninguém com a sua presença ou sequer com a sua ausência. Todas as manhãs no cais de embarque daquela mesma estação de metro, apanhava o transporte das sete horas e dez minutos que a despejaria no seu destino passados cerca de quinze minutos. Recordava a cara dos colegas lá do emprego e perguntava-se se hoje dariam pela sua falta. Talvez a outra, aquela que parecia dar por tudo e por todos. Que história se contaria depois de hoje? A caminho do hospital, amarrada à maca mais do que à vida, adivinhava a notícia do jornal diário: Mulher tenta o suicídio na linha do metro - Pelo menos hoje -pensou- venho no jornal.

sexta-feira, setembro 03, 2004

sesta





Estou blogo-improdutiva.
Vou fazer ó-ó...







quinta-feira, setembro 02, 2004

reforma na função pública




Ultimamente os despachos são de dois tipos: "urgente" e "muito urgente".
Deve ser como a história do "correio azul", o que era normal passou a ser considerado rápido e o resto demora mais tempo...




promessa

Pela manhã ainda não acordada partia o barco no balanço das ondas. Só mais tarde viria a consciência do calor quando ao porto já chegassem os mais dorminhocos para o despertar da conversa de dois dedos. Correriam as apostas da faina mais os petizes malandrecos espreitando o peixe graúdo quando já se depunham as redes ao descanso e as mãos do trabalho.
Vinham as gaivotas à refeição naquele grito que lembra céu e mar e coragens de aventura, misturando penas com algas do cais. Vinham as mulheres em busca dos companheiros e do conduto para o jantar. Vinha o silêncio depois, interrompido pelos namorados que espreitando a lonjura do mar prometiam lonjura no amor. Pela noite, vinha a briza mais calma e as luzes repetidas na água com a melhor promessa: Como história de cabeceira ou prece de criança outra manhã igual por repetir.

inflação


Um beijo?
Deves estar a gozar...



quarta-feira, setembro 01, 2004

adequabilidade líquida

-Traga-me um gin tónico por favor.
-Um gin? Mas, trago aqui a pasta para despacho.
-Sim um gin. Ou não sabe o que é?
-Sei, mas creio que não faz parte das minhas funções servir gin tónico.
-Ah... e um whisky com castelo?
-Está a brincar, já percebi.
-Não, não brinco com coisas sérias.
-Não faz parte das minhas funções servir bebidas...
-Então e o café para a reunião?
-Mas isso é diferente, não é?
-Porquê? Se for café já pode ser?
-Sim e é se for para a reunião.
-E se for para despacho?
-Não sei, creio que sim.
-Crê? Afinal é uma questão de crença?
-Talvez de adequabilidade...
-O gin não lhe parece adequado ao despacho, é isso?
-Não, não é isso...
-Então o que é?
-Eu trago-lhe o gin.
-Certo e deixe a pasta do despacho.