sexta-feira, abril 28, 2006

mudas conversas

Não sei mais o que te diga. Já que apesar de escutares os meus silêncios tens medo de os substituíres por palavras. Por outro lado, por mais que te dissesse, nada justifica o que acontece como se acontecesse de repente, e a mim já me cansa a explicação do desenrolar dos processos. Depois, há coisas que não morrem, sobretudo quando não nos esforçamos por lhes esvaziarmos o sentido ou por lhes darmos uma outra vida. É claro que há muito mais para além do que te digo. Há sempre reticências em qualquer ponto final. E é sempre possível prolongar o estertor até que se quede rouco. Poderia tentar falar-te de como não pudeste renascer mas entenderias como acusação o que mais não é que uma verdade exigente, e ambos sabemos como não é fácil viver com a verdade nem com as exigências. Mas podemos ainda calar-nos e deixar que o vazio nos embruteça até à aceitação do nada, arriscando o que sobra de nós. Que sei eu de todos os momentos, se já me esquece a importância que lhes dei, anestesiados pela sucessão dos dias? Nem quero saber das causas. Nem quero saber da dor que se repete. Prefiro a centelha de lucidez que me sobra. A reserva de qualquer coisa residente que me enternece. A sabedoria de todas as minhas culpas. Talvez seja melhor acreditar que sempre soubemos dos intervalos do nosso tempo. Dos espaços de sobrevivência mútua. Desde que não me recordes das promessas, não se quebrará este meigo paliativo. Entre as nossas mudas conversas ficou sempre o meu discurso que não pudeste perceber.

sexta-feira, abril 21, 2006

nem anjo nem demónio

Não sou um anjo de asas doces,
mas não venhas tu falar-me da tentação
ou do que se lê nos meus olhos,
esses brilhos que vês e aumentas,
até a íris se dilatar
ao ritmo do arquejar do meu colo...
Ou da maçã, que te dou a provar gelada,
apenas para que saibas do alimento
e da vida.
Podes sempre beber o que te ofereço,
água que dizes ser vinho,
só porque te ofusca a tua sede
e tens os lábios ressequidos do vento.
Não sou verbo nem carne,
mas nem irmã ou consolo,
não tenho essa facilidade do quotidiano.
Sou antes a que te espera por inteiro
colando ao meu corpo os teus pedaços.

quinta-feira, abril 20, 2006

ciência de mim

Eu sou parte de um plano universal que tende para o nada. Lógica inconsequente de um devir desconhecido. Explicação de como não se deve. Lição de morte certa. Sentido improvável de um caminho. Manifestação material de um devaneio. Construção de um não sofisma. Verdade iludida. Sem dolo, um paralogismo. Indução da parte para a irrelevância do todo. Faço-me falta a mim mesma como prova irrefutável de que existo.

terça-feira, abril 18, 2006

na ilha dos mutuns

Publico aqui parte de um lindo poema do Batista Filho.
Vão à ilha dos mutuns e leiam "riso novo".

"Já vi tanta coisa:
mulheres e homens cansados,
retornando aos seus lares, ao fim do dia;
bêbados cantando acalanto pra suas garrafas vazias;
jovens e boêmios nos shoppings e bares
- enquanto crianças nas ruas -,
reviram e catam lixo, co’as mãozinhas nuas...!"

segunda-feira, abril 17, 2006

a felicidade é fútil

Houve um dia em que a felicidade se foi embora batendo a mesma porta por onde entrara, e eu fiquei por ali a ver o espaço ausente que ela me deixava, tentando perceber as suas razões, tentando reorganizar-me e redecorar a sua falta. Não posso dizer que só me apercebi da sua existência no momento da sua partida. Fui abençoada com o dom de a experienciar ao meu redor e, talvez por isso, não deixei de me sentir melhor mesmo quando, em todos os dias e em todas as noites, pus a chave na fechadura e lhe dei duas voltas trancando qualquer regresso. O tempo baralhou-se desde então, como se na falta de marcos as datas se perdessem por comezinhas, desinteressantes, banais. O tempo, que parece fugir a diferentes velocidades, é constante e preciso. Eu não o sou. Serei apenas o que me resta de dúzia e meia de sensações, de risos, suspiros e lágrimas que, volteando na memória em viagens muito rápidas ao passado e ao presente, me fazem sentir ora mais jovem ora mais velha e cansada. Mas nada disto é muito relevante. Mais importante será a felicidade fútil e tão cheia de caprichos. Volúvel, duma adolescência constante e desconcertante, que nos transporta ao melhor de nós mesmos, para logo de seguida nos desiludir com a sua súbita partida, deixando-nos a braços com a vulgar existência e com um amargo de boca de quem já saboreou melhores acepipes. E não é de crer que lhe possamos resistir aos encantos, impedindo que nos volte a franquear a porta e que de novo nos deslumbre e nos leve o tino. Aceitemo-la pois tal como é. Visitante inesperada. Hóspede alegre mas desprovida de sentido. Saibamos tirar partido dos seus revezes e deitá-la connosco na cama para que nos aqueça por momentos a existência.

quarta-feira, abril 12, 2006

seis anos

Hoje fui acordá-la depois de lhe ter enfeitado a cama com os embrulhos engalanados de laçarotes. Pespeguei-lhe um beijo no pescoço e via-a espreguiçar-se de mimo e sono. Acorda princesa, parabéns! Vesti-lhe roupa nova e levei-a ao infantário. Envergonhada recebeu o entusiamo dos amiguinhos escondendo-se atrás das minhas pernas. Dei-lhe mais um beijo e saí. Ao entrar no carro apeteceu-me voltar atrás e sufocá-la de abraços. Fá-lo-ei mais logo quando lhe disser o que já sabe perfeitamente - adoro-te pirralha!

terça-feira, abril 11, 2006

dedicatória

Porque quem vê olhos vê corações.

sexta-feira, abril 07, 2006

chá no deserto

Só já pela noite vinham os enxames de estrelas apagar o amarelo das almas cansadas do pó e atenuar o cheiro dos corpos sujos, suados e despidos da dignidade que oferece um banho e roupa fresca. Não há eco no vazio mas o silêncio propaga as vozes quase perto do além. O telefone do deserto. Ouvia os murmúrios de si mesma, como se do ventre lhe soprassem os fantasmas da digestão, e da mente, os estalidos das memórias mais profanas. Não há cor quando o dia se cerra sobre as dunas. O azul tuareg é negro, fechado e envolve no escuro as sombras e os vultos acocorados em pontos de fogo, luz e fumo. Os Somovares. Neles fumega o chá. Pequenas lamparinas de uma civilização perdida, pequenos sorvos de menta que aquecem o frio e uma esperança qualquer. Atravessara-se ao seu fim. Despojara-se das mulheres que fora, para agora não perceber quem era. Era só traços de areia e vento e deixara escorrer-se para lá dos limites do improvável. Nómada dos nómadas. Falava muda o que ninguém percebia. Era de um outro planeta qualquer da mesma Terra redonda, imensa e plana. Os outros tinham casa na linguagem e era vê-los acomodados nas conversas. Quisera imolar-se pelo fim da tarde quando deitada no chão esperara que o sol lhe iniciasse a combustão e a deixasse em cinzas. Um pouco de si chegaria à cidade e recuperaria os dias no ponto em que os deixara. Fora antes tomada pelo corpo de um homem, e soubera que o único oásis possível lhe escorria em gotas pelas pernas. Não há vestes que cubram o sem pudor e não há pudor na loucura do deserto, nem véus que guardem a sanidade ou que lembrem a vontade de caminhar. Só o torpor que distorce a realidade, amansando-a até à sobrevivência, ao movimento inaudível da respiração em compasso binário. Adormecera depois mas não dormira com ele, apenas com o seu cheiro e com o íntimo alarido de conceitos recorrentes. Nestas horas de espasmos nocturnos tudo lhe parecia mais real que nas vigílias diárias de olhos despertos. Nem sempre o presente é mais verdadeiro. Podemos ser enganados pelos sentidos exaustos e assim trocara os dias de miragens pela verdade sobejante do repouso. Estava descrente de outro resgate e por isso, quando ouviu as palavras acreditou estar morta, ou que fossem espectros desamordaçados do seu diafragma – well come back! Uma sombra de si estava de volta ou era talvez o milagre do chá.

terça-feira, abril 04, 2006

o milagre da cópula

Quem te pôs na barriga da avó? Foi Deus? - Não minha filha, foi o meu pai... Mas, pensando melhor, talvez Ele tenha tido alguma coisa empatada no assunto. A tua existência reforçou a minha fé no que está para lá do concreto e o meu cepticismo nas inevitabilidades genéticas... Há sempre um espermatozóide abençoado. Aquele que em corrida, encontra o óvulo e o fecunda. Depois cresce o bébé e com ele cresce quem o cuida e alimenta. Há sempre um pai, gerador de espermatozóides apressados, e uma mãe, a que espera conhecedora dos destinos do seu corpo. Há sempre algo mais que ultrapassa tudo isto, o mero processo científico ou mecânico da concepção e a agenda gestacional. Nove meses até à expulsão. Tempo entendido por suficiente para a preparação do bébé e de quem o recebe. As leis são sempre genéricas e por isso só com jeito acolhem as excepções. Pessoas há que deveriam permanecer grávidas por muito mais tempo. Como as há, as que desde o momento da fecundação, estariam preparadas para o parto. Só após consideramos os outros processos. Os das relações dependentes ou porventura tão independentes que não importam. Há um momento que nem sempre se prolonga mas nem por isso podemos esquecê-lo, apenas diminui-lo. Nem sempre é fácil diminuir o que é um milagre mas consegue-se, tal qual se consegue relativizar a importância dos problemas quando se tem uma criança no colo. Viramos as coisas ao avesso e pomos de lado o que não é relevante. Há sempre um pénis que ejacula as sementes e um útero que as recebe, mas nem sempre há braços quentes de amor que lhes correspondam. Esse é o milagre maior. Como te digo, talvez tenhas razão, talvez tenha sido Deus que me pôs na barriga da minha mãe porque foi Ele por certo que te pôs na minha vida.

Mily

Transcrevo aqui um e-mail que recebi e que me deixou enternecida. Obrigada Mily e um ron-ron amigo da Bastet.

< Tentei deixar o comentário abaixo no teu blog, mas não consegui registrá-lo, pois mesmo tendo "criado" uma conta aparecia o aviso de "senha inválida" em todas as tentatívas que fiz. Não consegui detectar em que ponto eu estava errando (risos), e como não queria deixar de comunicar-me contigo, resolvi fazê-lo através desse email. Espero não estar a importunar-te. Eis o comentário:
"As palavras muitas vezes deixam seus ninhos para se acomodarem num cantinho da lua, e de lá observarem o próprio reflexo no coração das pessoas. Elas nunca morrem! Encantam-se!
Passeando pela ilha do Batista, enterneci-me com o belo poema feito em tua homenagem... e vim te conhecer! Através do teu comentário fiquei sabendo do aniversário transcorrido no domingo. Com o tempo escasso, pude visitar somente algumas partes dessa tua caminhada, mas já posso dizer que, por esse belíssimo trecho aninhado numa de suas postagens, fico a comungar o afeto e a admiração do Batista pelo teu precioso espaço:
"Há em mim um pássaro e uma mulher, umas asas e um coração, o meu corpo e o pensamento, o sonho e a razão"
Quem escreve uma pérola como essa, só pode ter acesso ilimitado ao mundo da poesia e no transitar pela vida.
Quero parabenizar-te pelo aniversário mesmo com o atraso de dois dias, mas nem por isso, com menor carinho. E saio deixando um afetuoso abraço que, somado ao tanto de afagos espalhados aqui pelos teus amigos, há de chegar-te também com algum valor.
Hei de voltar para beber novamente dessa tua fonte generosa de vida e amor.

Beijos ensolarados de alegria, para o teu dia de hoje."
Queria muito que ele figurasse entre os comentários de teus amigos, mas, infelizmente, por inabilidade minha, não consegui.

Com carinho,
Mily >

segunda-feira, abril 03, 2006

doces prendas de aniversário

Dos meus amigos de quem vou recebendo tanto carinho: o sonho do Batista Filho; na terra do faz de conta os parabéns da JP; um retrato da azul e uma gata sagrada à janela, do asul. Obrigada :)