quinta-feira, junho 28, 2007

deixem-me voar

O vento desassossega. Agita as almas das flores. Transporta odores de onde raízes os prendem. A fleuma de um sonho que se eleva além do solo, da terra estática, permite à mais limitada rosa ver o mundo. E que se perca num deserto de areia ou de mar. Prefiro um perfume desmaiado, que morra na duvidosa liberdade de um sonho, que o cheiro intenso de uma imóvel convicção.

terça-feira, junho 26, 2007

a qualquer momento

É cedo ainda. Vê que há tempo no armazém, por entre os linhos frescos que abrigam o futuro. Só as histórias não coincidem. A que fiz; a que vivo. Uma tecida pela noite, outra tecida ao sol. Tira o pêndulo da prateleira sobranceira à janela e ajeita-o no relógio de parede. Deixa-o correr em frente e verás que não termina. Precipita-se apenas para que te assustes. Assim se testa a tua fé. A minha é como o amor. Insuspeita. Inquebrável. Basta entender o que não morre para se certificar a verdade. Virei buscar-te eternamente ao teu exílio e por isso jamais experimentarás a solidão. Deixa-te dormir um pouco mais. Estarei aqui quando acordares e porque o tempo é circular, jurar-te-ei em falso uma data qualquer. Qualquer uma serve para viver a felicidade. E a qualquer momento podemos chamar presente.

segunda-feira, junho 25, 2007

meme

Asul, cá vai:

Quando não souberes o que queres, começa por identificar o que não queres.

Este foi o melhor conselho que já alguém, um dia, me deu. Foi responsável por uma enorme reviravolta na minha vida. Façam bom uso dele!

sexta-feira, junho 22, 2007

volta ao mundo

Pegou no lenço amarelo e saiu para a estrada. Ajeitou-o ao redor do pescoço e esticou o polegar. Quando o carro parou não soube que direcção oferecer. Escolheu o fim da viagem. Apesar da continuidade. E daí um outro fim. Até se esquecer de onde partira. Quando o presente se impôs ao passado soube que era hora de o retomar, e deu curso ao regresso. Recuperou a moeda do carro de compras. Felizmente levara o saco térmico ou os iogurtes ter-se-iam estragado.

quarta-feira, junho 20, 2007

o que foi feito de mim?

Descubro, entre o medo e a ansiedade, a vontade compulsiva de desenterrar um passado esquecido por entre páginas de livros gastos. A opressão cresce-me no peito como se tivesse interrompido a minha vida por cerca de um longo e inútil quarteirão de anos. A verdade mais simples e transparente que absurdamente afastei de mim: não há muito mais de válido que a verdadeira literatura.
Mergulho com profundidade nas páginas de Austerlitz, de W.G. Sebald.

terça-feira, junho 12, 2007

na arena da vida

Somos capazes de traçar os dias iguais. A mesma história. Uma linha constante. Pondo o capacete para o que caia de cima e a armadura para o que venha de frente. Ignorando a diferença contentamo-nos com a aventura de acordar. Somos capazes de esquartejar qualquer traço e provocar acidentes. Atravessar a estrada na diagonal até que o imprevisto nos sobressalte. De peito aberto. Sem armas. Rosto franco. Mãos despidas. Pega de caras à noite e à vida. E que ela seja um touro e reaja. Nos dê um coice. A vida a tracejado. E nesta intermitência declarar a constância de um amor. Porque se alimenta da coragem. Dos intervalos da verdade. De permanentes e nus reencontros.

segunda-feira, junho 11, 2007

grilo desbocado

Andas para aí a perder o tempo que não tens, a rever a vida como se fosse um texto. Na busca do rigor da vírgula perdes a emoção de um parágrafo. No último dia tudo darás para reaver as horas desperdiçadas e passarás avidamente à última linha do último romance: aquele que a morte te impedirá de saborear.

quarta-feira, junho 06, 2007

parto

Por dar corpo ao meu sangue, inquieto-me,
entre a busca do perdão
e o meu abençoado testemunho.
Dar à luz é votar à escuridão.

terça-feira, junho 05, 2007

relatório de actividades

Recomendo-me. Faço o relatório que espelha o interesse que não tenho. Que bom poder gozar nas palavras o que não gozo nos gestos. Uso a linguagem assertiva que mais detesto. Soa bem. Tem um toque do profissionalismo que me escapa e sobretudo do vigor que não me caraceriza. Faço a análise comezinha do senso comum suficiente para o deslumbre dos incautos. Pintalgo as folhas de gráficos roubados que dão o colorido necessário a qualquer apresentação. Uma capa e voilá! É bom saber fazer estas coisas com o distanciamento cínico que merecem. Portanto, numa palavra: soberbo!