terça-feira, outubro 24, 2006

volta e meia

Volta e meia e fico-me na meia volta. Meia volta volver. Vale mais a meia volta que uma volta inteira. E eu lá quero volver? Onde volto quando meia volta, volta e meia dou uma volta completa? Fiz um ponto no chão e por mais voltas que me dê, o meu corpo é um compasso. Ou o meu ponto é o Universo, ou é tão elástico, ou o meu pé é o apoio, ou é o centro, ou estas voltas faço-as eu por dentro e nunca as chego portanto a fazer? Ou é o meu ponto que gira, que me segue, que se me prende ao pé? Ou é o Universo que não muda, que é estático por mais voltas e meias voltas que se lhe dê? É que regresso ao mesmo ponto ainda que não lhe queira volver, se é que parto de onde chego, se é que chego se não parto, se é que mudo por fora ou por dentro, se é que faço, ou não chego nunca a fazer. Vai na volta e vai-se a ver que é tudo circular, que tudo gira ao mesmo tempo, que o ponto anula o pé e o vento é a ilusão de que existe movimento.

segunda-feira, outubro 23, 2006

stabat mater

- Quem toca o sétimo céu jamais deveria descer à terra!
Mas ainda me lembro das nuvens e dos quase desmaios. Do diafragma contraído e das notas. Aquela nota. Um fá com asas. Fac me plagis... E a voz que me saía e inundava para lá da casa e da rua. As ressonâncias no palato e no nariz. Era minha e não era porque era maior.
- Que morbidez é essa de pisar a lama?
Olho para mim e não sei responder. Pergolesi e as belíssimas áreas de contralto. O peito que se abria, o corpo expelindo o ar e a música a latejar-me nas têmporas. Reduzia-se o mundo a uma nota, essa que tinha asas e me fazia voar com ela.
- E esses grilhões nos pés?
São meus. Eram meus? Magoaram-me os tornozelos. Esses éteres celestiais de que me fala e que já não sei respirar. Ah, porque quando os ouço nem ouso comover-me. Os pés pesados que me puxam ao solo e as lágrimas que me denunciam. Tudo se reduziu à indiferença que disfarça o mais reles dos medos. Agora luto por outro céu e já venci quase todas as insignificâncias. Ainda musico palavras para vencer a mudez.
- Quem tem asas não as perde.
Há um território pardo em que não se é anjo nem mortal. Onde o ódio se levanta como a poeira tingindo-nos a face de cinzento. Depois, deixa de nos atingir e perdemos a vergonha e lavamos a cara e reconquistamos uma certa leveza, não digo que no ponto em que a deixámos. A firmeza destes músculos que empurram a voz não me deixam mentir. Houve um tempo em que voei. Fac me plagis... vulneraris, vulneraris, cruce hoc...
Atiro para o alto o que sou e liberto-me porque aprendi a dar. Aposto e dou. Nesta dádiva mora um outro Stabat Mater, belo e também musical.
- É essa a sua partitura.
Há notas que têm asas e esse fá, fár-me-á sempre voar.

quinta-feira, outubro 19, 2006

a cavalo dado...

O Alberto é um cavalo de peluche que está há três noites e dois dias lá em casa. Segue-me para todo o lado mas não gosta de mim. Isto é o que me é afiançado pela tradutora intérprete dos seus relinchos. Na primeira das noites foi cuidadosamente sentado dentro de uma caixa de plástico na bancada da cozinha, devidamente instruído pela sua mestre para não me deixar fazer sopa para o jantar. Pelo sim pelo não, não fiz a sopa. Afinal era o primeiro dia do Alberto entre nós.
Ontem, devido à greve dos professores, levantou-se mais tarde e seguiu a sua treinadora até ao ATL. Veio de lá com um fio da boca puxado e com indicações expressas de ser entregue à avó para que tratasse dele. No final do dia acompanhou-nos ao veterinário para a vacina de um dos gatos e foi deitado sobre a marquesa. Aí a coisa complicou-se. Não foi fácil para a veterinária vacinar o gato e vacinar o Alberto. Ao que parece não está muito habituada a tratar de cavalos e lá teve que se explicar, porque há veterinários que se dedicam mais aos cães e aos gatos e outros, mais rurais, que tratam de animais de maior porte. Mas o Alberto não é muito grande - insistia a rapariga. Bem, lá se vacinou o cavalo e felizmente também o gato que era para isso que eu lá tinha ido. Paguei a conta e nem verifiquei quantos tratamentos estavam debitados. Regressámos todos a casa. Eles os três lá trás e eu a pensar que por este andar o melhor será comprar uma carrinha de caixa aberta.
Seja como for, a coisa lá amainou e eu até que me consegui deitar bastante cedo. Menos mal, porque assim aguentei melhor a visita das cinco e meia da manhã. Entraram-me pela porta do quarto a dentro, a equitadora e seu cavalo, um coelho já velho e puído, mas ainda assim bem conservado para os seus trinta e três anos de idade, e dois gatos. Parece que o cavalo tinha feito xixi na cama. Abancaram todos para dormir o que sobrava da noite, perfeitamente alheios ao facto de a cama ser minha e de eu mal caber nela. Ao menos, há que convir, estão todos vacinados. A propósito alguém sabe onde posso comprar feno?

quarta-feira, outubro 18, 2006

conversa de pé de orelha

Deixa-me lá contar-te como vejo as coisas para além da história da presa e do caçador. Percebo bem a dura ferroada do animal que sofre, tanto quanto abomino o vitorioso espanejar das penas de um pavão. Posso até entender o rastejar de um animal ferido de morte, mas admiro o que a afronta de pé. Prefiro a prontidão de um tiro misericordioso, porque gosto que me brindem com essa dignidade. Depois é só juntar as peças et voilá! As marés são circulares e passamos de novo onde partimos. Molhamos os pés nas águas que poluímos, fraquejamos hoje junto de quem ontem desprezámos. Um dia usaremos a bengala de que troçámos e por isso não há que usá-la como bastão. A história do cuspo para o alto e da cabeça na qual aterra. Por isso nunca me rio, ainda que se hajam rido de mim. Tenho na memória algumas palavras, não por despeito mas à cautela da tentação de alimentar o eterno retorno. Daí a virtude do silêncio. É como vês, hoje não é mais que esta conversa de esplanada. Insignificâncias de pé de orelha. Não ouso futorologias nem posso proibir a ironia de qualquer destino. Adoço antes a saudade das minhas mãos nos teus cabelos.

terça-feira, outubro 17, 2006

o que eu prefiro

Quando a alma sai disparada e explode como pólvora inflamada percebo porque sou mulher. A combustão do meu corpo ascende o céu e rasga-lhe tiras de luz. Para jurar a perfeição basta-me saber onde me levas. Para conhecer a dor basta-me que te suprimas. Dizem que há uma vida para além de tudo isto, tirando o sal ao mar, castrando ao corpo o espírito, vivendo de rojos depois de voar. Quando lhe quiser chamar vida, lembra-me que jurei antes morrer deitada contigo. Porque é assim que eu prefiro.

quarta-feira, outubro 11, 2006

intervalo

Vou interromper este blog por escassos momentos.

terça-feira, outubro 10, 2006

oração

E lá vens tu trazendo de novo o que é tão antigo, como na vez primeira a mesma perplexidade, não que não saibas que a história se repete. Trazes também o cansaço do mesmo caminho, onde já não cabem as palavras que já me disseste, e por isso os olhos te escurecem de raiva, de já não haver a fuga dos primeiros milagres. E cá estou eu olhando curiosa os mesmos enigmas, com o realismo de quem já conhece as peças de cor, com a ferida aberta de lhes falhar o encaixe. E mudo a oração que faço pela noite, mas que ainda ousa o mesmo pedido, agora com a força de ser repetido, agora com a mágoa de ser repetido. Creio por vezes nos frutos da espera, como se a espera desse valor a tudo o que faço, enchendo os meus dias de uma fé renovada, como na vez primeira a mesma ingenuidade. Tenho, porém, o calendário dos dias, assinalando as melancolias com intervalos de espaço, brilha-me nos olhos a minha descrença, ao saber que de novo a história se repete. Mas há as diferenças do mesmo caminho, as palavras inventadas que te posso dizer, o enigma tem a promessa de uma solução, e a dor já não dói como quando a trouxeste. E lá trago eu esta fé tão antiga, que ponho perplexa na mesma oração, sabendo de novo que mereço milagres.

segunda-feira, outubro 09, 2006

o corridinho do meu pé

Porque acho que devo e porque quero, avanço o pé e recuo-o, para o soltar logo após e pensar, a vida são uns dias e este é dos melhores, é mesmo o dia dos dias, e nem quero pensar, mas penso, poderia ser sempre assim, mas talvez não seja, e se não for?, mas enquanto é, vou-te sentindo comigo, e eu mais que tudo contigo, salto uma vez mais no escuro, em dia pleno, cheio este dia com a lua redonda lá pendurada na janela e nós cá em baixo a olhá-la com o respeito que a perfeição merece. E nisto dos pés e dos medos, quem tudo quer arrisca, e eu, já se sabe, arrisco, se é risco saber que nada vale mais do que pôr a alma no sítio onde cabe, à justa, e com a alma a rebentar pelas costuras da felicidade, olhar-te como quem se olha num reflexo, e perceber o que sentes, mais do que sentes, o que quero que sintas e percebas, de mim ou de ti, tanto faz afinal, porque não há espaço ao luar para dizer de quem são as mãos que se afoitam ainda mais longe que o brilho das estrelas que já lá não estão, mas que nós ainda vemos, ante o pasmo e o espasmo dos corpos molhados pela espuma branca, mais branca à luz da vela que tudo vê e ilumina, a vela que acendemos para não deixarmos de ver o que somos, as diferenças que se esbatem quase à união do cosmos e dos celestes desejos que se ouvem, e que se dizem mais pelos gestos do que pela voz que soa estranha quando diz futilidades, e eu dir-te-ia todos os lugares comuns se os já não te tivesse confessado e a mim mesma prometido não os repetir, porque são passos a mais em frente, as palavras gravam-se quando destoam, e como não quero que nada destoe, prefiro adormecer calada no teu braço, e nem sequer sonhar que não há sonho melhor do que este, e só quando já dormes, te digo e me digo muito em surdina, este meu pé que se afasta também é teu.

terça-feira, outubro 03, 2006

nem é tarde nem é cedo

A idade do não é tarde nem é cedo, é porventura esta que nos aproxima dos quarenta. A noção de agora torna-se mais premente sem ser aflitiva. As aflições são próprias dos trinta, tempo das urgências e compromissos adiados dos vinte. Os vinte são um tempo de engano, porque julgamos que a década que nos separa das senhoras de Balzac há-de passar tão lenta quanto a que nos transportou da pré-adolescência à idade adulta. Há uma altura qualquer, por meados do quarteirão de anos, em que a nossa percepção do tempo se altera e em que os dias parecem tornar-se mais lestos. Depois tentamos reparar esse erro no horror da pressa. Queremos os casamentos, os filhos e as profissões.
É perto dos quarenta que, se ainda não sarámos, estamos prestes a sarar as feridas deste corrupio. É um tempo de aceitação da realidade, de que não adianta querer voltar atrás nem pretender fugir para o futuro. Desta consciência resulta uma espécie de harmonia entre corpo e mente, quando já não há necessidade de lutar pela afirmação de uma personalidade já firmada, nem tão pouco lograr perder tempo fazendo com que os outros tenham uma noção diversa do que somos. Há uma série de coisas que deixam de fazer sentido e uma série de outras que se tornam clarividentes. Há como que uma separação do trigo do joio. Os fretes que já não se fazem e os que deixam do o ser.
Tal como se aprende a ver e a desenhar, aprende-se a olhar a vida de uma perspectiva que, sempre esteve ali, mas nunca conseguimos reter. Talvez por ser um meio caminho, talvez por ser um tempo de balanço, escolhemos de tudo, só aquilo com que nos identificamos verdadeiramente e deitamos fora, aliviando a carga do nosso barco, tudo quanto achámos que podíamos ou devíamos ser.
Por isso digo que se trata de um tempo de agora, com toda a verdade que o presente lhe empresta. Altura de distanciamento e de proximidade. Distância das inseguranças, medos e crises emocionais, próprias de quem acha que o tempo lhe foge. Proximidade da nossa essência, aceitação do nosso corpo, do que somos e do que queremos, como é próprio de quem sabe o que fazer com o tempo que lhe resta. Nem é tarde nem é cedo.

segunda-feira, outubro 02, 2006

o eu mitológico

You Are a Chimera

You are very outgoing and well connected to many people.
Incredibly devoted to your family and friends, you find purpose in nurturing others.
You are rarely alone, and you do best in the company of others.
You are incredibly expressive, and people are sometimes overwhelmed by your strong emotions.