sexta-feira, outubro 28, 2005

nada a propósito de tudo

Descubro na gaveta da secretária "cinquenta poemas de amor furtivo". Oculta, pela capa sugestiva, uma bela e antiga dedicatória de amor. Pelo ar, rugem maviosos "três tristes tigres", qualquer coisa como "já não há, já não és, o mundo a meus pés". Batem à porta, "Faça favor de entrar sem pedir licença". Assim, simplesmente, nas mãos e na boca, cem novos poemas por fazer, por dedicar, um mundo inteiro de frémito e desejo e, ai de mim, "não me lembro de ter gostado, de me ter custado", cai a meus pés, cai sobre mim, que bom esquecer-me assim, neste teu corpo, de que um dia poderei reabrir outra gaveta.

quinta-feira, outubro 27, 2005

dia de festa

Na Rua da Judiaria e que blogue muitos e sempre bons.

arte pura

Motivos sérios levam a que me debruce sobre o tema. Pouco entendida que sou, apesar de amante de várias manifestações que a arte permite, vi-me em busca de definições que pudessem ajudar-me a enquadrar aquilo que não sei qualificar. Perante o painel em causa, colocou-se-me a dúvida, seria aquela uma obra expressionista? Com a ajuda do google descobri isto sobre o Expressionismo: "Movimento artístico que se caracteriza pela expressão de intensas emoções. As obras não têm preocupação com o padrão de beleza tradicional e exibem enfoque pessimista da vida, marcado por angústia, dor, inadequação do artista diante da realidade e, muitas vezes, necessidade de denunciar problemas sociais".
Certo era que a obra em causa parecia revelar emoções intensas ou, ao menos, provocava em mim emoções intensas. Não tinha também qualquer preocupação com o dito padrão de beleza tradicional ou, seguramente, qualquer relação com o meu padrão de beleza. Não me parecia, no entanto, que houvesse ali qualquer enfoque pessimista da vida, qualquer marca de angústia, malgrado a angústia que me a mim me transmitia e o pessimismo com que eu olhava a obra de arte. Inadequação do artista perante a realidade? Necessidade de denunciar problemas sociais? Sentia apenas que a mim me impressionava de sobremaneira, quase às lágrimas... Seria uma obra impressionista?
Recorri novamente à pesquisa e encontrei isto: "O nome Impressionismo, como tantos outros exemplos na História da Arte (os termos gótico ou maneirismo, por exemplo), inicialmente teve um cunho pejorativo. Foi um rótulo colocado ao trabalho de um grupo de artistas que, de acordo com os críticos da época, acreditavam na impressão do momento como algo tão importante que se bastava por si mesmo, dispensando as técnicas tradicionais académicas.
Esses artistas realizaram inúmeras exposições em Paris entre 1874 e 1886, porém, sua aceitação pelo público foi lenta e sofrida, pela incompreensão ao trabalho realizado. Ridicularizados inicialmente pela crítica por não seguirem a tradição pictórica que vinha sendo solidificada desde o renascimento, acabaram por, paulatinamente, obter o respeito e aceitação de suas "novas técnicas" por parte do público. E, como acontece em muitas ocasiões, a crítica foi a reboque dos acontecimentos".
Tratava-se sem dúvida da impressão de um momento feita à revelia das técnicas mais tradicionais e, pela reacção que em mim suscitava, percebia perfeitamente que os artistas impressionistas pudessem ter sido ridicularizados. Percebia melhor ainda a aceitação sofrida por parte do público mas já me custava a entender que finalmente a crítica tivesse ido a reboque dos acontecimentos...
Eu não pretendia ir a reboque dos acontecimentos, nem daquela arte ou da artista em causa. A parede à minha frente era imensa mas menor que a dor que a obra me infligia. Sentia-me verdadeiramente impressionada e inclinada a aceitar que a artista sofresse de inadequação perante a realidade... Ela, a verdadeira artista expressionista ou impressionista, afastou-se a medo... eu... agarrei no esfregão verde e num produto abrasivo de limpeza e passei duas horas verdadeiramente impressionantes a esfregar os rabiscos com que a minha filha dera largas à arte pura que nela se manifesta.

terça-feira, outubro 25, 2005

a morte

Faleceu a mãe de uma amiga. Como quase sempre nestas situações não sei nunca muito bem o que dizer, não sei nunca muito bem o que fazer. Fico petrificada pela impotência de retirar ou diminuir a dor alheia e assalta-me o receio de ser pouco convencional, pouco assertiva, de dizer alguma barbaridade inconveniente porque, invariavelmente, esforço-me por ser positiva, por animar quem sofre, por tentar o impossível- aliviar o que não tem alívio imediato. Regra geral, saio antes do tempo, fujo com medo de mim mesma, consciente todavia de que esta não é uma boa opção. Ouvi o sermão do padre e provavelmente terei sido das poucas a fazê-lo. Falou da morte e da ressureição, do momento de libertação das penas deste mundo e da paz que encontraremos após o fim, por todos conhecido, a que nos leva esta vida. Num funeral, chora-se a saudade. A pena que temos de nós mesmo por sermos abandonados por aqueles de quem gostamos, os que nos fazem falta, os que nos suportam, os que nos mimam e amam. Num funeral chora-se por medo, o pavor inconfessável pelo mistério da morte que, sabemos, mais cedo ou mais tarde haveremos de conhecer. Chora-se porque continuaremos mais sózinhos, porque teremos de crescer mais um pouco e o crescimento é um processo doloroso. Hoje, procurei relembrar o funeral do meu pai e um sorriso veio-me aos lábios. Na altura, abraçada à minha mãe, pudemos ambas conter as lágrimas mesmo quando a bandeira portuguesa foi dobrada e posta nas mãos dela. Lembro-me de olhar para ela e, como sempre, achá-la invencível, inquebrável, altiva quando recusou que abrissem de novo o caixão para uma última despedida. Nós já nos tínhamos despedido dele com um até breve. E ele, por certo, olhava-nos de cima orgulhoso brincando com a morte.

sexta-feira, outubro 21, 2005

afectos

Por vezes recordo tempos de afectos perdidos, se afinal se perdem ao serem lembrados, que perdidos são os tempos de que nada se recorda.
Por vezes há tempos em que o tempo me pára, quando os afectos ressurgem na máquina que o mede, ao tempo que passa e de que ninguém tem memória.
E fico parada, parada no tempo, das vezes perdidas em afectos audazes, guardando por vezes detalhes fugazes, que um dia por certo, cuidarei recordar.

quinta-feira, outubro 20, 2005

eduardo

Ouço as lágrimas do céu e levanto o nariz às nuvens em jeito de prece, encharcando os meus sentidos despertos para a vida e aguçando os instintos para a batalha que se aproxima. Peço força. Que o carácter nunca se dobre às circunstâncias para que possa dormir comigo sossegada, em paz, nas mesmas convicções. Nos meus ombros repousam as mãos invisíveis que reconheço pela eternidade de carinhos. Aos meus ouvidos sopra o vento de uma voz antiga que me acordava sobejas vezes dos meus sonhos. E quando te sei assim tão presente, herdo a coragem que era a tua.

terça-feira, outubro 18, 2005

esta noite

Calço pantufas nas minhas palavras para que suaves caminhem por entre a distância que nos separa e então, já descalças, encontrem o caminho dos teus lençóis e se enrosquem por entre o cheiro do teu corpo, escrevendo "bons sonhos" nas riscas do teu pijama.

bula desta mulher

Contra-indicações:Incompatível com hipertensos.

segunda-feira, outubro 17, 2005

direito à diferença





Porque jamais reconheceríamos a igualdade se não fosse a diferença, o belo se não fosse o feio, o bom se não fosse o mau, o amor se não fosse... o medo!

sexta-feira, outubro 14, 2005

violência doméstica

Aconselham-se as pessoas mais sensíveis a não lerem este post.
Tudo parecia decorrer normalmente. Deitara a minha filha e ela adormecera profundamente depois de me ter chamado apenas trinta e duas vezes, não contabilizando o habitual pedido de uma goma e um copo de água. Tinha o telemóvel a carregar na tomada da bancada da cozinha quando soou o seu toque. Dirigi-me algo surpresa pelo adiantado da hora. Nada demais. Um beijo nocturno e uma voz quente. Desliguei satisfeita e talvez por isso o meu andar fosse mais saracoteante. À saída da minha cozinha há um tapete. Um pequeno tapete azul. Já apagara as luzes do corredor, não fosse a rapariga acordar e chamar-me de repente pela trigésima terceira vez. Não o vi. Senti-o. Fofo e macio debaixo do meu pé. Um horripilante miado cortou o silêncio da noite - Pisei o gato, merda! Tropeço. Dou com a fronha na ombreira da porta, com os joelhos no chão e com o queixo na pequena scooter da rapariga adormecida. Sinto o gato felpudo e gordo arranhar-me o pé e fugir assustado. O sangue jorra do meu sobrolho. Levanto-me a custo com o joelho esquerdo dorido. Arrasto-me até ao espelho do wc. Estanco o sangue com dificuldade. Um lanho enorme adorna o meu sobrolho direito e um vergão vermelho o meu queixo. O pé direito sangra pelos arranhões felinos. O joelho esquerdo abatata-se de súbito, grande, imenso, imponente no seu vermelho arroxeado. Acabo a noite no sofá. Estendida. Com gelo na cara e no joelho e a rir descontroladamente. O gato espreita-me ofendido. Pedi-lhe desculpas. Salta para o meu colo. Promete não voltar a deitar-se naquele tapete. Como é bom estar na segurança do lar!

quinta-feira, outubro 13, 2005

bandeiras da noite

Gosto quando me despertas de madrugada anunciando que a noite já finda mas o amor permanece. No silêncio que cerca os nossos abraços, que desfraldam os estandartes do desejo, procuro o momento exacto para selar os meus suspiros. É na completa mudez que sei dizer-te como me sinto.

segunda-feira, outubro 10, 2005

quadro

Vi um pentagrama de luz. Uma corrente de energia que abraçava o globo unindo cinco pontos cruciais. Vi vagas revoltas e gentes assustadas amarinhando escarpas. Vi um homem cansado, velho de sofrimento e jovem de fé e a cabeça coroada que falava em vão com os homens e com Deus enquanto braços, braços negros de aflição, se agarravam a uma piedosa mão de uma linda mulher que os capturava para o sol a troco de nada. Vi a impotência de um desígnio qualquer e uns olhos descrentes de que os meios ainda justifiquem o fim. Um jardim solitário, onde uma alma solitária questionava alguém em silêncio pelo abandono a que fomos votados.

sexta-feira, outubro 07, 2005

reflexão (des)animada

Como não fiz campanha, fui assistindo impávida à campanha dos outros. Agora que a campanha termina, assalta-me o pânico do período de reflexão. É que, ou perdi as minhas capacidades cognitivas conjuntamente com a minha consciência cívica ou, tornou-se por demais clarividente que entre trampa não se escolhe.
Como tal, ainda estou para decidir se no Domingo não ficarei a ver o canal Disney. Convenhamos que o Pateta, o Mancha Negra, os Metralhas, os idiotas e os ladrões, contrabalançam com o Mickey, com os "tiras", com os super heróis, devidamente reconhecidos e prestigiados pela população de Patópolis pela justiça, pela competência, pelo trabalho em prol do bem e da comunidade mas, e neste mundo (ir)real meu Deus, quem contrabalança com quem, neste panorama de políticos (des)animados e desanimadores?

quinta-feira, outubro 06, 2005

pontuação

Poria interrogações nas minhas velhas certezas e exclamações no que um dia jurei não conhecer tal qual como na surpresa de ver transformar os pontos finais que cravei nos teus olhos em quentes reticências.

terça-feira, outubro 04, 2005

exílio

Dias completos. Grelhas de números imensos, decrescentes, riscados numa parede até à total liberdade e pequenos raios de luz, espartilhados pela grade desbotada pelo desespero do sol e pelo calor das mãos que a abraçam, seguram?, perguntando em silêncio, ao silêncio, quando?, e já mal sabendo que por certo um dia, no dia certo, o ferro quebrar-se-á o suficiente para que o corpo se cinja e depois se expanda, expulsando o passado, em gritos de vida ou, talvez apenas, num rouco gorgolejar de espanto. Completos dias de mudez e de murmúrios, de surdez e lassidão, de brumas de breu e escuridão, repetitivos dias de memórias de arrependimentos, e reforços de fé, esses balões descoloridos que vencidos, desmaiam tristes, murchos, aos pés, pela poeira, no chão.

segunda-feira, outubro 03, 2005

cadê?

Onde estão os castanhos macerados e o mel da paisagem que pinga do pote? Onde estão as folhas pisadas nas calçadas do Outono? E a música que corre como zunido de abelhas, suspiros de cordas? Onde estão as varandas varridas a trote pela secura do vento? Onde está a poesia perdida, a loucura que me foge? A terra, a terra gretada e a água profunda onde me afogue?