quinta-feira, janeiro 27, 2005

asas de malva

Já era borboleta quando voou. Asas de malva, véus de mulher, silhueta de fada, varinha, condão, asas de dança, dança parada. Fora outra qualquer, apenas mulher, vestido vulgar, mãos de tarefa, colo de filhos, caminho igual, escada de prédio, carro pequeno, carro pequeno, escada de prédio, caminho igual. E nos caminhos iguais acontecem diferenças, e nos prédios banais moram princesas, do carro pequeno alaram corséis, das escadas cinzentas rasgos de luz, anéis de sol. E quando a viram já não a viram que as asas de anjo já lhe cresciam, rosto de riso, dança parada, silhueta de fada, outra mulher. E quando a viram já não a viram, vestida de véus, braços de pomba, vôo de garça, plumas de graça, a mesma mulher. E nos dias diferentes há caminhos iguais, princesas banais vestem mulheres, corséis alados são carros pequenos e nos degraus cinzentos, com asas de malva, vai uma fada com véu de mulher.

quarta-feira, janeiro 26, 2005

cataratas de fogo

Do fogo, jorram cataratas. Ficas submerso em água e silêncio. Que o prazer emudece os gritos e os teus gestos prendem-se nas minhas mãos. Tapo-te os olhos para que não vejas o teu próprio sorriso nem os meus olhos que procuram a tua felicidade. E gosto do erguer despachado no vagar do teu tronco e do seu peso quando me tapa. Gosto das mãos misturadas e das roupas espalhadas pelo chão do quarto. Esquadrias incertas ao sabor do sabor e do desejo exacto quando se perde a certeza e se ganha o instinto, quando pára o tempo e a gravidade se altera e na terra há só esse momento por momentos infinito. O desencontro das horas tardias que velozes galopam na demora dos encontros, na rodilha dos lençóis que se dispensam no calor dos nossos corpos. Como gosto do feitiço destes jogos, das poções e dos cheiros misturados pelas vagas de entregas sucessivas, águas mudas, cataratas.

terça-feira, janeiro 25, 2005

recruta da paz

As minhas garras são feitas de lágrimas. As minhas armas magoam-me, pesam-me quando alguém acusa a dor ou o receio. Serei sempre este soldado condoído das feridas que inflingi. Recruta da paz em tempo de guerra, peão na frente de batalha com a bandeira branca escondida junto ao peito amargurado. E quando o meu pé pousa no peito adversário e os ramos da vingança me enlaçam, estendo a mão contemporizadora que assina as tréguas. Quantas vezes, no entanto, quando já traçava o caminho de regresso, confortada do perdão que oferecera, fizeram do meu tronco pelas costas, o alvo de munições cobardes. E a dor maior não é a da seiva que escorre das feridas abertas mas a da fé que me abandona e a da vergonha na face enrubescida, pela ingénua arrogância de ter podido acreditar que também o inimigo traria, nesta guerra, a alma a chorar.

segunda-feira, janeiro 24, 2005

a minha coleira laranja

Levaram-me ao psicólogo porque eu tenho uma maneira diferente de ver o Mundo. Fizeram-me uma avaliação e chegaram à conclusão que eu estava desenquadrada da realidade. Eu insisti. Aleguei. Acho que a realidade é que está desenquadrada. Tão desenquadrada que esperam que eu fique feliz com a ração diária de whiskas, com o meu cesto morno e fofo e até com o rato de brincar que me compraram no supermercado. Não adianta explicar, e quantos miados perdidos, que a vida está lá fora. Que a liberdade não passa por aqui. Puseram-me uma coleira cor de laranja. Acho que ficava bem com a minha pelagem. Suportei-a o melhor que pude. Vivi com ela uns anos. Quase um mandato. Ao fim de algumas sessões compreendi como tudo funcionava. Eu não iria mudar. Só precisava que pensassem que eu ia mudar. Virei-me de cabeça para baixo e vi o Mundo como eles o vêm. Uma passagem sem qualquer sentido. Uns gatos têm e outros não. O coração bateu mais forte. Os apelos da raça. Afiei as garras e tornei-me selvagem. Sem abrigo. E se acaso recordo com saudade o conforto perdido, olho a coleira laranja que outrora me prendeu e percebo que nunca mudaria nada por dentro.
PS: A magnífica fotografia foi gentilmente cedida pelo Sr.Barão

quinta-feira, janeiro 20, 2005

arrefecida

Fiquei só na terra do nunca. Olho as asas com que voei, caídas no chão. As máscaras sorridentes que descartei desbotadas pelos traços do tempo. Esse tempo que me gelou os pés e o corpo. Que me arrefeceu a liberdade e a fé. Demasiado tempo para o milagre que não acontece. Como não acontece a magia. E o arrepio da certeza deste engano tira-me o riso. Despe-me de alegria. Renego a minha inteligência e prolongo o meu estertor, cruzo os braços ao rumo implacável da vida. Com o vento deixo-me cair ao sabor da mentira, aguarelo o sofrimento quase à insensatez do pitoresco. E nesta pantomina sou a burla do que fui, a marioneta do acaso. E estendo o braço e dou a mão ao assassino que comete com doçura o suicídio que a cobardia me impede. E nem velo este corpo abandonado, de quem nem cobra os seus favores. Nem peço a redenção abençoada de ter a alma guardada lá no alto, que esse piedoso perdão só alberga sofrimento.

terça-feira, janeiro 18, 2005

manifesto mandrião

Num dia cinzento, esbatem-se as cores alegres nos tristes sorrisos do sol entre os esgares do nevoeiro. Num dia frio e cinzento, perdem-se os movimentos dos corpos nos afagos da lã. Num dia frio, cinzento e chuvoso perdem-se os quentes suspiros nos abafos molhados e em arrepios sentimos a gota certeira que nos percorre o pescoço e nos traz o desconforto logo pela manhã. O guarda chuva arrumado, o pára brisas embaciado e o apelo da cama quente que arrefecerá até à noite longínqua. Os gestos pesados, entorpecidos, pelas mil e uma fronteiras de chuva, o tronco dobrado, o sapato molhado, o documento estragado em borrão de tinta...
Por entre as poças e os tropeços, os ventos que descarados nos expõem os agasalhos e os desagasalhos, chegamos desaguisados, mal dispostos, mal encarados, aos bons dias forçados e às conversas de elevador, está um dia horrível e para amanhã ainda dão pior... Ah, que horror! Mas pior, ainda pior, quando na pausa sagrada, para a bica matinal enquanto folheamos com enfado as caras dos vizinhos e as gordas do jornal, se senta connosco à mesa um cromo de ocasião, enérgico, cheio de vigor, indiferente ao tempo, à chuva, ao frio, ao nevoeiro, o que fala de projectos, do trabalho com amor, o que diz “sinergias” e “implementação” e quando se levanta apressado nos recorda pela negativa, não esqueceste a nossa reunião?. Não, claro que não! Claro que sim! Claro que me esqueci! Vou de baixa, estou doente, morreu-me alguém da família e percorrem pela mente, rápidas, velozes, certeiras, leis, decretos, fugas, férias, sonhos de aposentação, totobola, totoloto, euro-milhões, casas novas, carros estupendos, mobílias requintadas, salas envidraçadas, praias privadas, vista de mar, distribuímos dinheiro pelos próximos e queridos, acrescentamos aos poucos à lista uns quantos mais esquecidos e nesta benevolência que nos vem do dinheiro, lá gramamos o dia inteiro os cromos e as reuniões mas entre nós e com franqueza, se o trabalho lhes dá tirolesa, dêm paz aos mandriões!

sexta-feira, janeiro 14, 2005

a blogobela e o blogomonstro em rima antiga

No limiar dos reinos de fadas, o reino da realidade virtual.
No reino da blogolândia aceitavam-se todos os emigrantes sem necessidade de passaporte ou requisitos especiais. A vacinação necessária para este reino boémio, resumia-se tão só a um forte alucinógeneo. Tínhamos poetas, escritores, críticos políticos, musicais, da treta e outras coisas que mais. Tínhamos personagens revisitadas, decoradas, alternativas e banais. Mil e uma meninas que escreviam nos seus diários e entre coisas bonitas encontravam namorados. Os engatatões de profissão, os pseudo-intelectuais, os humoristas inspirados, os que andavam aos achados e uns poucos de eleição. Entre esta confusão, entraram sorrateiros, dois personagens deportados do reino consagrado dos desenhos animados. Tomada a dita vacina, mal sabiam coitados qual seria a sua sina. Para quem conhece a história do Monstro e da Bela tradicional, ficará surpreendido com o desfecho da vida deste par pouco normal.
O Monstro e a Bela, por esta ordem de entrada, arranjaram dois blogs dos quais fizeram a sua morada. A Bela enfeitara de contos encantados a sua nova casinha mas com o passar do tempo e porque tinha um contador, achava-se pouco visitada e entrou desesperada em forte crise de auto-estima. Nos braços do seu Monstro procurava com desgosto fonte de inspiração mas o tema do amor, já velho e muito gasto, era fraco repasto para os contos de condão. Neste clima crescente de angústia diária suspirava descontente pelo reino ausente em que era tão estimada. O Monstro, mais umbiguista, vivia ensimesmado e muito pouco interessado no que a Bela fazia. Discutia muitos temas com colegas de profissão e achava nesta vida, um sentido, uma razão. Entre o par, outrora enamorado, caiu, tão pesado, o habitual triste fado do final de uma paixão. A Bela, entristecida, olhava-se arrependida do tempo que ali passara, revendo as velhas palavras que o Monstro lhe dedicara. Cada frase de amor, ou jura enternecida, parecia-lhe gravada na ruga muito vincada da testa empedernida do estúpido do Monstro a quem ela tanto amara mas que por tudo a trocara deixando-a só e esquecida. Mirava-se da cabeça aos pés e também aos de galinha, contando os cabelos brancos e comparando a sua sorte a um touro de Barrancos. Em fuga de recurso desligou a Internet, deu o corpo ao manifesto e saiu em passo lesto rumo à velha fronteira. Quando pisou mais ligeira terra firme do outro lado, deitou um olhar derradeiro ao seu velho companheiro que lhe parecia mudado. Como rezava a história, contada à noite às crianças, só o verdadeiro amor o livraria das semelhanças com o Monstro mais feio que havia na vizinhança. A Bela teve pena mas qualquer outra lhe pegaria com a ingénua esperança de que em príncipe o transformaria.
Para vossa informação, a Bela veio a casar, com um jovem magnata que muito lhe ofertava em jóias de ouro e prata. Dias de boas massagens e de caros tratamentos faziam a Bela ainda mais bela do que o Monstro recordava pela noite em pensamentos. Com alguns ensinamentos que herdara do estupor ela montou um "estaminé" sobre direitos de autor. No seu lindo gabinete ricamente decorado vinham em busca de conselho pessoas de todo o lado. Processou tão boa gente, da mais alta reputação, até ao dia fatídico em Monstro lhe apareceu de visita ao portão. Quando a Bela o olha de frente e lhe pergunta o que queria, uma grossa lágrima de pena pela face do Monstro corria...
- Porque choras meu idiota? Traçaste o teu destino ou julgavas porventura que outra qualquer mulher te daria a formosura?
- Sabes minha Bela, já ninguém está para me ler com a moda das Webs as gajas gostam é de ver e fogem a sete pés do Monstro triste e só que agora tu aqui vês.
- Pudeste ser um príncipe mas não... tudo tu renegaste e olha-me bem para ti no que tu te transformaste... Foi-se-te a veia, fugiu-te a inspiração e até aquelas meninas com que fazias serão...
A bem de quem nos lê, abreviamos a trágica história do Monstro envelhecido e dos seus breves dias de glória. À laia de conclusão e porque lhe falta a moral, não troquem o vosso blog pela vida real.

escolhas e escolhos

De todas as cartas, as não escritas.
De todos os dias, o amanhã.
Entre os livros, os que vou ler.
Entre as palavras, os neologismos.
Dos sentimentos, escolho a fé.
Das virtudes, a coragem.
Dos repúdios, o egoísmo.
A verdade, a que vejo.
A mentira, a que sinto.
As pessoas que não essas,
que escolhem diferente caminho.

quinta-feira, janeiro 13, 2005

o casamento do meu melhor amigo




Não, estás enganada.
Qualquer semelhança entre a ficção
e a realidade é pura coincidência.



quarta-feira, janeiro 12, 2005

sopa de legumes

Cá está. A culinária transmite-nos muitos conhecimentos válidos e ensinamentos proveitosos para a nossa vida. Creio mesmo que o acréscimo de pacientes pelos consultórios de psicanálise se deve em grande parte ao abandono dos saudáveis hábitos da prática culinária e à ignorância gradual das receitas e pequenos truques de "chefe" quantas vezes transmitidos de geração em geração. Na verdade, além da manipulação dos ingredientes ser um contacto próximo e privilegiado com os segredos da natureza, na cozinha, entre os tachos e as panelas, descobrimos mais e muito do mundo e de nós mesmos. Para que não se julgue que isto é tão só conversa da treta, fica um pequeno exemplo: Toda a gente sabe que da mesma base simples se confeccionam as mais diversas sopas. Cinco cenouras, quatro batatas, uma cebola, água, sal e um fio de azeite. O que importa é o legume adicional! Se feijão verde, sopa de feijão verde. Se agrião, sopa de agrião. Se nabiças, sopa de nabiças. Mas vejamos o caso do alho francês ou da abóbora. Com o alho francês ou “porro” e com a abóbora, devido às suas características “apaladadas”, é aconselhável retirar, respectivamente consoante de um ou outro se trate, a cebola ou a cenoura à referida base, para que tenhamos então uma boa sopa de alho francês ou de abóbora.
Na política é a mesma coisa. A base é a mesma. Muda o legume adicional que, tal como na sopa, vai servir de "cabeça de cartaz". Quando o legume tem carisma, sabor específico, substracto adicional, acontece como com o alho francês e com a abóbora. Deve mudar-se a base, não jogam, guerreiam e o sabor fica muito forte.
Ora, quando por má gestão despenseira, não temos em casa nenhum legume carismático ou mesmo com "pinta" de adicional, fiquemo-nos pela base. Simples. Sem artifícios. Sirvamos sopa de legumes. Se tivermos algum legume (meramente) "adicional", façamos a sopa da mesma maneira, dando-lhe então o seu nome para que os convidados acreditem que em nossa casa se servem sopinhas ricas e variadas – Dá algum prestígio à casa e à cozinheira.
Todavia, e esta é a regra importante a reter, quando temos entre as mãos um líder, um legume carismático, muda-se a sopa ou não vá o caldo entornar.
Nestas divagações, e em tempos de simples sopas de legumes e caldinhos sensaborões, fica-vos a imagem que adorna o "post". Para que saibam amigos que se até nos legumes há sexos e incompatibilidades, esperemos pois com fé e serenidade uma “cabeça de alho porro” ou uma “cabeça de abóbora”, com os "ditos" (já que se fala de legumes digamos mesmo os tomates) no sítio, para que possamos finalmente prestigiar a nossa gastronomia.

segunda-feira, janeiro 10, 2005

daily life

Chegara tarde a casa, depois da noitada pelos territórios vizinhos. Orgulhoso, defendera o seu quintal do ataque do "sarnas". Aquele gato mal cheiroso da Dona Fernanda. Dera-lhe cá uma corrida. Estaria agora a dormir no colo da velhota. Como é que ela aturava um gato tão estúpido? Revia com gozo as tropelias da madrugada. Ah, e a Julieta... Desta conquistara-lhe o coração. Lá porque era "persa" recusara-lhe o namoro. A presunçosa! Mostrara-lhe que entre gatos não há raças, nem "pedigrees". Há coragem e agilidade. Lá porque tinha uma almofada de cetim e um laço rosa que a fazia ainda mais bonita, tinha muito que aprender com ele. Da liberdade de rondar pelos quintais, de caçar aqui e acolá, de dormir ao sol sem medo de sujar o pelo e de dar umas ensinadelas aos metediços. Pstt, pssst, psssttt! Pronto, acabara-se-lhe o sossego. O chato do seu puto de estimação estava a fazer aquele barulho que o irritava solenemente! Quando é que o miúdo aprendia a miar? E depois, agarrava no novelo de lã e queria que ele o divertisse. Lá dava uns saltos, umas patadas e o puto ria, ria satisfeito. Mas o que é que um gato não faz para ver o seu humano de estimação a rir... Já cansado, abandonava com dignidade o circo e dirigia-se ao seu vaso favorito. Depois da sesta, afiaria as garras no espigado girassol, meteria qualquer coisa no bucho e faria uma serenata à doce Julieta. Miauuu, miauuu, miau! A vida é cá uma canseira!
"In diário de Romeu"

sexta-feira, janeiro 07, 2005

vulgo dinâmica

breve intróito
A estima que me merecem todos os meus leitores em geral e alguns em particular e ainda os telefonemas de amigos desorientados, leva-me a adoptar esta medida, a que não chamaria drástica, mas talvez e tão só inusitada. Assim, não se tratando de forma alguma de refazer o post imediatamente abaixo, trata-se tão somente de lhe dar uma outra forma, uma outra leitura que, creio, facilitará a sua apreensão. Espero que se sintam livres de pedirem mais do mesmo sempre que o acharem oportuno e/ou necessário.
Cá vai:
A monotonia faz-me muitas vezes sentir que me afundo (salvo seja!) como se fosse uma rocha ou tivesse grilhões de ferro (aqui a repetição é para afligir o leitor e transmitir com ênfase o processo do afogamento). Afundei-me quieta, sem esbracejar (como seria expectável e louvável até) mas com raiva de não me mexer e pena de mim mesma (coitadinha que me estou a afundar e ninguém me acode). Quando percebi que estava a ser uma idiota chapada (e esta expressão tem a sua graça) e já quase não me lembrava porque tinha raiva ou do que é que tinha raiva (e não, não se trata de arterosclerose mas sim da passagem do tempo) deixei de me sentir coitadinha. Na monotonia (imagem das águas paradas) que achara uma m#%rda, achei alguma piada, alguma vantagem. E daqui decorrem as duas perguntas:" Onde estavam as amarras que afinal eu me pusera?" e "Ou em que rocha supostamente me tornara?" - Espero que fique claro que se tratam de imagens. Eu de facto não me havia amarrado, nem me transformara por processo alquímico desastroso em rocha. Por fim, as conclusões: A vontade de andar sempre a fazer de saltimbanco não é uma herança da minha infância (reservo-me o direito de fazer um destes dias um outro post sério sobre este assunto) ou se é, eu aprendi a repudiá-la. E agora, o happy ending: "E se me perguntam se afinal eu me resigno, ou se por fim estou velha e cansada, mostro os braços que ainda se levantam de quem nunca afinal foi afogada" - Como quem diz , não se trata de eu me ter transformado numa comodista, numa resignada, ou de estar velhota e a cair da tigela, nãaa, eu cá estou rija, percebi que eu é que me estava a tramar e ainda cá tenho os bracitos levantados para o que der e vier! Toma!
Nota final da autora: Eu cá acho que isto assim fica feio. Que não é para isto que cá ando. Que tenho mais que fazer que explicar aos mongos o que escrevo, mas pronto. Ahh! E ainda o título "dinâmica" que pretendia resumir o movimento oculto na estagnação. Certo?

quinta-feira, janeiro 06, 2005

a dinâmica

Fui ao fundo em águas paradas, como rocha, com grilhões de ferro. Submerji imóvel, impávida mas em lastro de raiva e pena. Quando a raiva se esbate em espirais de fumo e se perde no nevoeiro da memória, a pena, acaba! A estagnação, tão violenta, ganha corpo leve e assenta, quase tomando um estranho movimento. Onde estavam as amarras que afinal eu me pusera? Ou em que rocha supostamente me tornara? Como âncora que afinal não fora herdada, ou herança que por fim eu repudio, compreendo nesta vida o desafio de chamar sereno ao que me castra. E se me perguntam se afinal eu me resigno, ou se por fim estou velha e cansada, mostro os braços que ainda se levantam de quem nunca afinal foi afogada.

terça-feira, janeiro 04, 2005

árvore

Gostava de ser uma árvore ao pé da água. Tronco firme que não soçobra de anseios. Com os ramos como enleios carinhosos, aos velhos, crianças e pares amorosos que na sombra se deleitam. Queria estar de flores enfeitada, engalanada para a festa da vida e pelo Outono poder ser despida, pelo vento, sem vergonha. Raízes antigas, sabedoras, que da água e do sol se alimentam, sem a gula pecadora e ávida, da boca que de beijos e iguarias, sequiosa nunca se farta. Encontrar o movimento agarrada, contemplar o mundo extasiada sem a pressa ou correria. Deixar descansar na minha copa quem esse espaço conquistasse e alegrar-me se voltasse, sem sofrer com a partida. Encontrar a paz na minha sorte de ver correr a água tão perto sem angústias ou devaneios de partir em mil cruzeiros crendo longe o que está perto.

segunda-feira, janeiro 03, 2005

os incríveis

Conheço razoavelmente as mulheres e também os homens. Sou uma daquelas e privo com estes. Constantemente se surpreendem com este dom de que pouco explico. Não se explicam os dons. Explica-se aos outros o que eles sabem mas nem sempre confessam. E com a estridência da verdade transformada em som e palavras, olham-me surpresos. Eu cá, já os olho com a indiferença quase profissional de quem faz o prognóstico e prescreve o receituário. E curiosamente esta faceta a que exageradamente ousei chamar dom mais não é que a consciência dos outros. Os outros sem mistério. Despidos do encanto com que os vestimos para tantas vezes nos agradarmos. Reduzidos aos instintos primários sem os rendilhados dos gestos e atitudes. Deste resultado nem sempre agradável poucos querem as consequências. Ninguém gosta de ver a nú o que de si próprio quiz esconder. A verdade é que quase ninguém gosta de alguém pelo que é mas sim pelo que dele quiz fazer. E depois há a coragem. Rara virtude. Que bruta nos faz enfrentar com firmeza a fragilidade absurda de quem nos rodeia. Que nos faz dizer com arrogância "o que tu sabes já a mim me esqueceu". Como ninguém está para ouvir "amo-te como és"... No fundo todos querem ser os super-heroís aos olhos de quem os ama. E todos querem heroínas angélicas e dramáticas e não simples mulheres que mistificam as suas mais básicas necessidades com mistérios de doces palavras e lágrimas furtivas. E neste mundo dos falsos "incredibles" cometerei o erro recorrente de não lhes alimentar o "ego", despindo-os de fatos e mascarilhas e chutando a verdade para o alto. Helás!