quinta-feira, dezembro 21, 2006

o urso bailarino

Ver uma raposa com umas grandes orelhas de coelho feitas em cartolina ou um elefante com um rabinho de rato feito em fita preta de cetim, é uma coisa mesmo muito estranha e divertida. Começavam a ouvir-se os sons dos primeiros ensaios e toda a bicharada se treinava bastante para o grande concerto de Inverno. Os castores preparavam as madeiras mais sólidas para o palco e os pica-paus faziam os entalhes mais delicados. Os actores passeavam os seus fatos ao espelho e pediam às macacas costureiras os últimos retoques.
Todos os animais se esqueciam das zaragatas de Verão e das discórdias do Outono e trabalhavam em equipa na preparação do grande espectáculo anual. Trocavam-se ideias, recitavam-se poemas, afinavam-se harpas, flautas e violinos, escolhiam-se tules transparentes e rendas coloridas para as dançarinas.
Da família dos ursos não se podia dizer que fosse muito dotada para as artes, ou pelo menos para as artes de palco, mas a Dª Francelina era considerada a melhor doceira da região e era a responsável pela organização do habitual banquete que se seguia ao concerto. Ela fazia as melhores tartes de amora silvestre, os mais deliciosos pudins de morango e framboesa e os mais bonitos e saborosos bolos de pêssego com baunilha. O pai urso tinha muito orgulho na sua mulher e na sua enorme e redonda barriga felpuda. Era tão gorducho que os seus passos lentos e pesados se reconheciam ao longe e era difícil, senão impossível, imaginá-lo a correr ou a saltar.
Todos os dias a Dª Francelina preparava para a sua família opíparas refeições e só ficava satisfeita quando todos comiam muito bem e nada deixavam no prato. Esse era mesmo o melhor elogio que lhe podiam fazer.
Jessica, a pequena ursinha, já ajudava a mãe a cozinhar, mas do que ela gostava mesmo era de fazer colares, pulseiras e brincos com folhas e flores que entrançava em ráfia e fita de sisal. Ela havia recebido um importante convite e nem cabia em si de contente. Era ela quem iria desenhar e conceber as jóias dos artistas e, desde então, passava horas felizes a imaginar trabalhos únicos e diferentes.
Para Rafael, o irmão de Jessica, as coisas não corriam tão bem. Ele não achava graça nenhuma a ajudar a mãe na cozinha, não tinha jeito nenhum para fazer brincos e enfeites e nem sequer gostava de acompanhar o pai nos seus passeios porque ele andava muito devagar e parava em todo o lado para cumprimentar os amigos. Assim, quando se apanhava sozinho, Rafael escapulia-se para perto do lago e deixava-se ficar horas a fio a ver as danças dos cisnes e das garças. Para ele era a coisa mais maravilhosa do mundo e trocaria quase tudo para poder aprender a dançar.
Certa vez caíra na asneira de falar à mãe no assunto e ela havia-lhe explicado que os ursos não tinham sido feitos para dançar. Que as suas patas pesadas e redondas não tinham a graciosidade necessária para passos de ballet e por isso, era bom que ele se deixasse de patetices e começasse a aprender a ser um ursinho a sério e a saber imitar o seu pai na caça e na defesa da família.
Mas Rafael fugia para as margens do lago e era dentro de água, onde os corpos são mais leves, que ele ensaiava piruetas e coreografias imaginárias, e porque os sonhos são ainda mais leves do que o ar, ele sonhava que um dia viria a ser um grande bailarino.
Ora, por esta altura do ano já todos sabiam que papel desempenhariam no espectáculo e, ainda que fossem só espectadores, tinham faixas coloridas para mostrar, palmas coordenadas ensaiadas, gritos de claque divertidos, com que animariam a festa e os seus números favoritos. Só o pequeno urso Rafael andava triste porque nada tinha preparado para o grande dia.
Num belo dia de sol de Inverno, estava o nosso amigo junto do lago, quando ouviu alguém resmungar. Aproximou-se mais e mais e saltou-lhe para o colo um pequeno duende com um ar muito mas muito aborrecido. Era a primeira vez que Rafael via uma criatura daquelas e estava fascinado com o seu comprido gorro de veludo vermelho com uma grande borla de lã na ponta. O duende continuava a refilar e olhava meio assustado, meio zangado, para o focinho preto e peludo do urso.
- Tira-me daqui, urso molengão!
Rafael tratou de obedecer, e colocou o pequeno duende em cima de uma pedra.
- Quem és tu?
- Não se vê logo que sou um duende? Ou achas que sou a tua avozinha? – Perguntou o duende mal disposto.
- Alto lá, não sejas mal educado! – disse o Rafael ofendido com tanta refilice – Porque estás tu tão aborrecido?
- Oh... aconteceu-me uma grande desgraça. Perdi a minha varinha mágica dentro do lago e eu não sei nadar – acabou por confessar o duende envergonhado.
Rafael que sabia nadar muito bem para um ursinho tão pequeno, deitou-se à água e começou a procurar a varinha mágica do duende rezingão.
- Ora aqui está ela! – Exclamou o nosso amigo depois de alguns mergulhos.
- Bem hajas, ursinho, bem hajas! – Disse o duende visivelmente aliviado por recuperar a sua preciosa varinha.
- Olha duende, tu com essa varinha podes fazer magias? Fazer coisas de sonho?– Perguntou-lhe Rafael– É que, já que eu te ajudei, podias ajudar-me tu agora. Sabes, é que eu gostava tanto de ser bailarino!
- Bailarino? Um urso bailarino? Onde já se viu? – E o duende desatou a rir à gargalhada!
Rafael, que já estava farto que se rissem dele e do seu sonho, virou as costas e começou a chorar. O duende ficou preocupado porque, apesar de ser refilão, ele não era mau, e só tinha achado a ideia um bocadinho absurda. Um urso bailarino convenhamos que é uma ideia mesmo estapafúrdia! Pior que um urso bailarino só mesmo um elefante ou um hipopótamo. Mas como aquele urso o havia ajudado a encontrar a sua varinha, e como parecia estar mesmo muito desolado, o duende acalmou-o e pediu-lhe para que ele lhe falasse do seu sonho.
O ursinho começou por contar ao duende que, sempre que podia, corria para a beira do lago e deixava-se ficar a admirar a dança das garças e dos cisnes. Contou-lhe ainda que era dentro de água que ele treinava as suas piruetas e espargatas e que para um urso ele era muito ágil e tinha muita flexibilidade. Já havia muito tempo que ele todos os dias trabalhava numa coreografia de um célebre compositor humano chamado Saint- Saëns.
O duende, admirado com o que ouvia e com a força de vontade do pequeno Rafael, abanava a cabeça de um lado para o outro, fazendo balouçar a borla de lã do seu carapuço como se fosse um pêndulo de um relógio de parede. Claro está que, como toda a gente sabe, quando um duende abana a borla do seu carapuço desta maneira, é porque está a pensar numa coisa muito séria ou difícil.
- E então duende, vais ajudar-me? Vais fazer uma magia com a tua varinha?
- Sim e não – Respondeu misteriosamente o duende.
Mas que raio de resposta era aquela? Sim e não? Estaria o duende a fazer pouco do ursinho? Foi preciso que o duende lhe explicasse tudo muito bem para que o Rafael percebesse porque é que a resposta era sim e não ao mesmo tempo. O duende ia ajudá-lo mas sem usar a magia da varinha. O pequeno duende que agora agitava a borla do seu carapuço de trás para a frente de uma maneira muito animada, puxava pela pata redondinha do Rafael enquanto lhe dizia: anda, mexe-te!
Quando finalmente o duende parou de o puxar, tinham chegado a uma bonita clareira onde serpenteava um riacho de águas azul celeste. As águas eram tão límpidas que Rafael conseguia ver-se como num espelho e pareciam tão frescas que ele nem se atrevia a molhar o pêlo. Em cima de uma pedra lisa, mesmo no meio do riacho, estava pousada uma linda ave de penas tão brancas e de asas tão longas e graciosas que só podia ser uma ave bailarina. O duende aproximou-se dela e estiveram os dois em tão grandes conversas que o urso achou que se tinham esquecido dele. Estava quase a ficar amuado por ninguém lhe ligar importância quando a bela ave se lhe dirigiu e lhe perguntou se era ele que queria ser bailarino. Rafael respondeu-lhe que sim. Disse-lhe que dançar era para ele a coisa mais importante do mundo, que quando sentia a música fazer-lhe cócegas nas orelhas e ela entrava no seu corpo, era como se ganhasse asas e pudesse voar como um pássaro e ser leve, leve como a água que corre ou o vento que sopra.
Então a ave bailarina olhou para o duende e disse-lhe que sim, que iria ensinar o pequeno urso. Rafael abraçou o duende com tanta força que quase lhe amarrotou o veludo vermelho do carapuço enquanto lhe agradecia muito esta grande ajuda que ele lhe estava a dar. E entre um abraço apertado, antes de desaparecer por artes da varinha de condão, o duende bichanou-lhe ao ouvido: Sabes Rafael, não há magia mais forte que o amor.
Nos tempos que se seguiram Rafael trabalhou arduamente com a sua professora, horas e horas por dia até lhe doerem as patas e cair de cansaço. Aos poucos Rafael aprendeu todos os passos de ballet e as piruetas mais arriscadas e difíceis. Apesar de esgotado pelo esforço de tanto treinar, Rafael nunca queria parar e só desejava aprender mais e mais. A professora estava encantada porque nunca tivera um aluno tão dedicado e trabalhador e por vezes quase lhe parecia que Rafael já sabia mesmo voar. Foi por isso que a ave bailarina inscreveu o pequeno ursinho na festa de Natal. Seria o último a actuar e iria dançar o “cisne” do Carnaval dos Animais de Saint-Saëns.
O tempo passou depressa até ao grande dia. Na clareira estavam reunidos todos os animais para assistirem e participarem no espectáculo e nos bastidores a confusão era muito grande. Passavam animais de um lado para o outro, vestindo e despindo peças de roupa, pondo adereços, afinando as vozes, trocando abraços e votos de um bom espectáculo.
O nosso bailarino estava fascinado com aquela azáfama, olhava deslumbrado para tanta cor e entusiasmo que o rodeava e percebeu que todo o seu corpo estava a tremer de nervoso e excitação. Foi então que sentiu uma mãozinha pequena a segurá-lo. Era o duende! Trazia o seu belo barrete vermelho e uma casaca de festa verde musgo de asas de grilo. Rafael ficou contentíssimo de o ver e explicou-lhe que estava cheio de medo de fazer má figura e de não ser capaz de dançar. Se ao menos o duende fizesse uma magia para o ajudar. Então, o duende olhou-o nos olhos e disse-lhe:
- Olha Rafael, lembra-te do amor que tens pela dança e do quanto tens trabalhado e vais ver que a magia acontece.
Aos primeiros acordes do Carnaval dos Animais fez-se silêncio. Rafael pisou o palco, fechou os olhos e sentiu a música a fazer-lhe cócegas nas orelhas. As suas patinhas começaram a querer voar e ele executou as melhores piruetas de sempre. Todos os seus movimentos tinham a graciosidade e a firmeza próprios de um verdadeiro bailarino. Nunca Rafael dançara tão bem. Quando a música acabou explodiram as palmas. A assistência aplaudia de pé como se faz aos grandes artistas. Rafael estava tão contente que lágrimas de felicidade lhe rolavam pelo focinho. Quando deixou o palco esperavam-no os seus pais, a sua irmã, a sua professora e, é claro, o seu amigo duende. Ofereceram-lhe flores e deram-lhe abraços. Afinal era mesmo verdade, não há magia maior que a magia do amor.

Deixo-vos este conto que eu escrevi para a minha filha e os meus votos de um Santo Natal.

segunda-feira, dezembro 18, 2006

a última ousadia

Percebi na luz de paz que banhava o Tejo que eras finalmente imortal. A mesma ironia na vida e na morte. Celebraste o dia em que te trouxeram à terra com o seu último aconchego. Para que assim pudesse a tua despedida ser uma festa.

quarta-feira, dezembro 13, 2006

diário de uma hora de almoço

Sentadas ao sol num banco de madeira junto à estrada, falámos sobre a essência da vida e o seu equilíbrio. Sair mais cedo do trabalho ou fazer o bolo de chocolate da minha mãe, é o mesmo prato de duas balanças de vida. A dela e a minha. Regozijámo-nos desta sabedoria: nada é mais ambicioso que ser feliz.

terça-feira, dezembro 12, 2006

um amor que não se constipa

Vivo de espaços sonâmbulos. De manhãs irreais. Adormeço com a tua mão no meu rosto já o sol rompe nas cortinas da janela. Mudaria tudo se a manhã jamais morresse. Se o dia fosse sempre cedo e se a tarde nunca viesse.
Mas ao teu lado na rua, a fantasia alastra e embebeda a verdade do dia e da noite. Talvez se menos te amasse fosse real esta vida. Assim há o medo que o amor não resista aos dias iguais. Que não seja feito de carne e sangue. Que seja tão perfeito que não sobreviva. Que seja tão frágil como um anjo e que as suas asas se dobrem e quebrem sem o viço de um sonho.
Trago este amor nas minhas mãos. Mas fecho-as em concha. Como a criança que guarda uma borboleta e lhe tira das asas o pó que a faz voar. Depois, com a noite, vem de mim a voz sábia da razão. E fala-me da liberdade. Do amor que anda na rua ao frio e que não se constipa. Do amor que sobrevive à morte e às manhãs que se sucedem.
Acordo com a tua mão no meu rosto e quero trazê-la comigo aos percalços do entardecer. Para que ao teu lado só sejam sonâmbulos estes fantasmas que o sol mata quando rompe nas cortinas.

quarta-feira, dezembro 06, 2006

rapsódia em verde

Há verde pelas ruas e é verde também o cheiro das chuvas.
As heras que trepam ao nevoeiro, sufocam os troncos, húmidos, e os musgos como esponjas coladas nos vidros, são leitos escorregadios de pequenos regatos.
Há verde neste ar que nos pesa, quando se baixa sobre os corpos e telhados, tingindo-os, encolhendo-os às telhas, aos ossos molhados e doridos.
E os instantes de cinza transparente das quentes e breves baforadas, das bocas, das chaminés, morrem em vapores tolhidos.
É verde o ar, são verdes as ruas, é verde também o cheiro das chuvas.
E só às árvores agrada esta agonia porque tingem as folhas desta sede e como gigantes cachecóis abafam-nos com uma vida que pulsa em verde

segunda-feira, dezembro 04, 2006

perfeição

Perguntam-me por onde ando, dir-vos-ei quem sou. Porque nem sempre os meus passos mostraram a certeza das minhas confissões. E quase nunca as minhas confissões revelaram certezas. Uma correlação entre a fuga dos meus passos e a procura de uma identidade. Esse despropósito de afirmação, inutilidade que nos leva meia vida. Outra meia vida para entendermos a utilidade do tempo que perdemos. Até à liberdade total do não pensamento. Ao equilíbrio dos gestos. À mudez das palavras e ao discurso dos actos. Ou ao contrário. Tanto faz. Porque sou o que digo e o que mostro. Agora que sei desta unidade percebo os socalcos do caminho e as feridas nos pés. É no alto que se fazem os castelos arrastando as pedras com o esforço dos corpos. Lógica ancestral. Percebemos a infância e porque lá voltamos, para repôr em dádiva o que recebemos. Depois abrimos os caminhos porque o medo está vencido e fazemos felizes os que se acercam. Há mais serenidade do que festa. E por isso à noite adormeço numa prece reconhecida e volto aos sonhos mais antigos. Há duas fases da inocência. A que nos é dada e a que se reconquista. Quando somos o que fomos num só corpo, numa só vida. Vejo em ti metade de mim e em mim que sou finalmente o que fui. Falta muito pouco ou quase nada. Quando puderes regressar ao que és tocaremos o céu.