quinta-feira, janeiro 24, 2008

o meu cartaz

O sol, essa gratuita publicidade à vida, apanha-me um sorriso desprevenido e projecta-o no meu peito. Tenho um coração a gargalhar. Tenho vento nos pés. Tenho vergonha desta ousadia de viver intensamente e vaidade na vida que me preenche. Evito despropositadas invejas - como invejar o que todos pertence? - e cerro a liberdade no meu bolso de peito. Só mais logo a verei despontar em cravo perfumado. Como esconder da realidade esta força que me acontece? Se os meus olhos anunciam em cartaz, um brilho de fé?

terça-feira, janeiro 15, 2008

casa fechada radiografias à tranca

Os homens têm uma certa tendência a complicar tudo quanto se lhes afigure semelhante a um processo mecânico. Algo nos genes masculinos, mesmo nos mais inábeis no que à mecânica se refere, clama por uma chance de aplicar uma lógica qualquer, a que nós, mulheres, somos completamente indiferentes.
Chamava eu um amigo para me dar uma ajuda perguntando-lhe, o que de resto lhe pareceu um absurdo, se tinha uma radiografia que me pudesse emprestar. Apesar da sua estupefacção, lá compareceu à minha porta armado de uma fotografia de raio x às suas vértebras, ainda meio desacreditado do destino que eu lhe pretendia emprestar. Confrontado com o meu drama pessoal - eu acabara de fechar a porta da rua com a chave por dentro - e não satisfeito pelo primeiro erro grave que cometeu de imediato ao recusar à minha filha o acesso à sua radiografia alegando, jocoso, que tinha vergonha porque estava nu, ofereceu-se, amavelmente, para tentar levar a cabo a tarefa que eu lhe propunha: tentar abrir a porta fazendo passar a radiografia pelo trinco.
Aí começou a complicação masculina habitual: porque o trinco era um triângulo e de forma que a radiografia tinha que entrar enviesada, porque a parte arredondada do triângulo estava para dentro, porque o ângulo de curvatura da dita tinha que ser transversal- ou seria oblíquo? - ao trinco, e o diabo a sete. Já o rapaz suava e tinha o casaco pendurado na porta do elevador quando eu, vendo o seu desespero, resolvi ir a casa da minha mãe buscar a chave suplente que lá tenho guardada, consciente, todavia, de que de nada me serviria uma vez que a outra chave estava por dentro. Mas, pensei eu, o importante é retirar o rapaz daqui antes que ele comece a desenhar no chão os planos de ataque da radiografia ao filho da mãe do trinco. Regressados de casa da minha mãe, já com a chave suplente na mala, tentei abrir a porta e, tal como eu esperava, sem resultado. Aí passei-me! Fazendo ouvidos de mercador aos reparos masculinos sobre a forma como eu metia a radiografia na frincha da porta, enfiei a dita à bruta, puxei com força para baixo e... voilá!, a porta abriu-se.
À cautela, resolvi guardar a radiografia, para futuras necessidades, no porta bagagens do carro. Dado o atraso da hora, o meu prestável amigo foi buscar o filho para jantarmos todos juntos. Quando finalmente nos sentávamos à mesa com uns hambúrgueres à frente, sai-se a minha filha para o filho dele:
- Sabes que a minha mãe tem uma fotografia do teu pai todo nu?
Não sei o que foi mais engraçado, se a cara do pai se a cara do filho ou se a cara da minha filha deliciada pela reacção que conseguiu provocar. Uma coisa é certa, as costelas do rapaz ainda estão no meu porta bagagens e, se algum dos meus leitores se vir em similar assado, é bem vindo a reclamar os meus préstimos porque, apesar de não perceber nada de mecânica, levo jeito em arrombamentos.

quinta-feira, janeiro 10, 2008

antes de ir

Lê-me um conto. É outra maneira de pedir de um abraço. Eu abro o livro na primeira página, tomo o lugar vago ao teu lado e, entoando fábulas, adormeço a necessidade que sentes. Escorrego nos parágrafos enviesando a história em largos godés que ultimam o teu sono, apresso-me ao final e ao baixar das luzes, para que a noite vença o cansaço do dia e o afago da prosa te envolva nos meus braços mornos. Pouco mais sei fazer por nós do que admirar os detalhes das vírgulas que te sossegam ou as interrogações constantes nos teus olhos firmes. Nem as respostas mais directas satisfazem as reticências em que te demoras propositadamente, atrasando a inevitabilidade de um sonho tão mais amplo que o meu. Quando arrasto os pés no corredor, entreabrindo a porta que nos separa, divido o meu peito em dois, para que a melhor parte de mim te embale e te ensine a transpor os sobressaltos de um quarto escuro. Antes de ir espreito uma vez mais a tua respiração rezando ouvi-la eternamente.