quarta-feira, setembro 15, 2004

de onde espreito

Difere de ontem a temperatura, talvez a luminosidade mas não as expectativas. Essas, quando as havia, transportava-as de um dia para o outro numa gestão racional de víveres. Pelo Inverno passado esgotaram-se. Saboreei a última num misto de gozo e pavor. Esse gosto de tudo nada prendia-se como melaço ao céu da boca. Esgotou-se por fim já sem qualquer surpresa. Desde então diferem outras coisas, sorrisos, caras, atitudes. Já mais nada difere e assim é como se no fundo nada diferisse. Esta certeza da igualdade dos tempos por vezes conforta-me outras nem tanto. Se calhar já nem faz sentido falar sobre tudo isto mas também pouco mais me resta para falar. Com as expectativas foram-se também as histórias que vinham agarradas aos sonhos e que eu semeava de personagens e alegrias diversas. Apaixonei-me por essas personagens, dei-lhes vida, cor, rubor de faces, dei-lhes tempo, dei-lhes de mim. Delas recebi o que sempre se recebe das miragens, força para prosseguir até ao preciso momento em que se desvanecem. Nesse deserto, palco das minhas histórias, povoei lugares, tendas e oásis, vesti vestes transparentes e fui outras mulheres. Nem a saudade me resta porque sei que tudo teve o seu tempo e foi tempo de engano. São suaves os enganos, quantas vezes mais amáveis do que as verdades. Das verdades vivo eu agora, a realidade nua e crua sem qualquer graça e encanto. Não meço o rigor da vida ou a precisão do fiel dos dias entre loucura e sanidade, mentira e verdade, encanto e desencanto. Trocaria de resto estas verdades por outras mentiras. Mas já não posso. Já não sei enganar-me como antes. Esta é a lição da vida. Desaprendermos ao ponto de nada mais querermos aprender, ao ponto em que nos desapegamos porque nada mais há que nos agarre à força do sonho. Desde esse Inverno que vejo com bonomia a passagem das estações que se sucedem com sentido para quem ainda acredita. Para mim é uma ironia pérfida desse Deus que lá do alto nos mistifica com esta suposta dádiva da Terra. Entre flocos de neve e banhos de sol, caminham os corpos entre si, esbarrando-se, misturando-se, unindo-se, evitando-se, como se algo pudesse mudar por isso. Da minha janela, percebo que é indiferente.
Esta sabedoria trouxe-me a morte. Dos anos em que acreditei na vida e no percurso do conhecimento fica a saudade que se tem de um bom livro que não iremos contudo reler. A nostalgia de um bom filme que termina entre as vozes que distantes e infantis comentam o argumento. Entre o saco de pipocas e o sorver das colas estarei eu, de onde espreito, a profetizar a última viagem.

2 Comments:

Blogger Softy Susana said...

Espero, muito sinceramente, que este post não seja o anúncio de mais um fim. Gosto muito, e de todas a vezes que te leio.

7:54 da tarde  
Blogger Bastet said...

Softy:
Mais uma vez obrigada por me leres e espero que o continues a fazer porque este post não é aviso de fim.
Palavra de Bastet!
beijos

10:35 da tarde  

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