domingo, julho 18, 2004

contabilidade


Entrelaçava as palmas das mãos acariciando o vazio. Gesto repetido, tantas vezes, que lhe fazia parte do ser. A sua vida era uma longa conta corrente, exacta, precisa. Aproveitava as últimas folhas da velha sebenta escolar na qual, com rigor geométrico, traçara linhas longitudinais: Dever e Haver.
Na vida tudo se resumia a este saldo constante. Pelo final do dia, recolhia-se às contas.
Tempo sério, demorado. Já assim vira o seu pai fazer. Sentava-se na cadeira, recuperada do contentor, e debruçava-se sobre a mesa. Contornava os números, minuciosamente desenhados, redondos, perfeitos, num realce sofrido que só ele compreendia os contornos de tal aritmética. Era aquela a sua biografia.
Ocupava o seu tempo em comparações numéricas, quem tinha, o que tinha, como tinha. A inveja instalara-se serena e pausadamente no seu corpo. Tomara-o como amante fiel e exigente. Prestava-lhe culto diário, procurando no Livro Sagrado a salvação para os pecados alheios.Dos dias e das noites fugira-lhe o sentido. Da vida e da morte conhecia os algarismos. Entre os Salmos de louvor esperava conformado a ajuda divina, o Deus, reparador e presente, temível na ameaça da solidão.
O corpo juncara-se, seco de vida e amor. Como por veia cortada, escorrera-lhe a força da juventude, fluíram-lhe as energias, o suco, a cor. Pela noite, quando se deitava sozinho, ignorando os apelos do sexo viril, recordava naquela cama a companhia. Do desejo vinha a raiva contida, apaziguada pela masturbação frenética e pela certeza de que ao menos lhe ficara o colchão. Pago. A pronto!
Na casa, escura, sombria, ficaram os traços da sua passagem. Nas coisas, todas as que deixara levianamente para trás à sua partida, a marca, a história, daquela que ele só soubera perder. Nesse dia, não soubera que números desenhar na página diária. Contabilizara os pertences, os tarecos, as mobílias. Contabilizara os géneros que pouparia, as roupas, perfumes e brincos. Não soubera desenhar a sua perda. O cheque eterno prometido que ficara, assim, sem provisão.