terça-feira, maio 31, 2005

desafio

A Hipatia fez-me um desafio. Um post erótico para a rubrica comPILAções. Transcrevo-o aqui:
Diz-me então que nome te dar. Por onde queres que te leve neste passeio imaginário. Que ruas do teu corpo deverão ficar com as marcas que me pedes e quando, quando o teu desejo eclodir, que mulher quererás então ao teu lado. Fala-me das vestes que tiro, das páginas de poesia que rasgarei no teu sexo, para que possa tragar um poema e guardar no meu hálito a chave de um soneto. Fecho-te então os olhos à luz e os pulsos ao movimento para que a percepção das carícias e dos medos se misturem com os anseios que me descreves. Vou lembrar-te do frio, para que sintas o tremor do gelo e as gotas de suor se refresquem no teu peito. Vou apagar-te da memória quem tu és, para que possas renascer na liberdade da criança amamentada pelos meus seios e para que morra inocente essa sede de outros néctares. Olha-me então pela vez última, antes que esqueças o que sou, antes que te vista e dispa rasgadamente na descoberta do teu novo corpo. Diz-me então que nome te dar. Como chamarei a esse homem que hoje dou à luz pela fantasia, para que quando te abandonares em gritos de mel, reconheças quem já foste e nomeies sem pudor o que afinal sempre quiseste.

segunda-feira, maio 30, 2005

tripas, trapos e obrigados

Regresso de fim de semana. Mãe obrigada pela casa limpa. Mãe obrigada pelo jantarinho já feito e que há um ano me andavas a prometer. É verdade, gosto de tripas. Na verdade, adoro tripas. Obrigada mãe. Cansada. Demasiado cansada mas com deveres por cumprir e saudades por exorcisar. O meu computador. O meu e-mail. O meu blog. Tantas saudades. Pufff! Mãe??? Alô mãe? Limpaste o escritório mãe? E o computador também mãe? Com um trapinho húmido? Um trapo molhado mãe?!!! Pois mãe, ele pifou!!! Obrigada mãe!

quarta-feira, maio 25, 2005

aviso

Um pequeno intervalo impõe-se por razões (nada) profissionais. Há que tirar proveito das pontes enquanto não cedem ao peso da crise.

terça-feira, maio 24, 2005

leitura de olhares

Já aprendi a ler nos olhos das educadoras de infância e das suas auxiliares. O olhar terno, e raro, que normalmente significa que os nossos filhos foram uns queridos nesse dia muito em particular; o olhar enervado, e mais usual, invariavelmente sucedido de desabafos sobre tropelias, atitudes selváticas à mesa e/ou com os colegas (também eufemisticamente apelidados de "amiguinhos"); o olhar comprometido, mais ou menos regular, e que me leva de imediato a procurar mazelas no corpo da minha filha, enquanto ouço o cauteloso relato de como ela caiu no recreio, levou com um boneco em cima ou uma cotovelada no olho. À lista, acresce agora um outro - o olhar curioso - e este, confesso, era-me desconhecido. Este olhar consiste numa observação demorada, cautelosa, curiosa, e que se processa em silêncio, da mãe da criança. Percebemos que algo não está bem mas não sabemos bem o quê. Não sabemos o que esperar. Começamos a ficar subitamente nervosas e desconfortáveis na nossa roupa e no nosso calçado. Os minutos que antecedem as palavras são de tensão e nervosismo. A criança está bem. Não chora. Não tem marcas de arranhões nem de esfoladelas...
Só depois, vem de rompão: Sabe o que é a sua filha me pediu hoje? - Ela sabe perfeitamente que eu não sei, mas faz uma pausa educada - Que lhe pusesse uma música para fazer uma dança sensual! Ai!, achei tanta graça! - Não, não achou graça nenhuma, é bom de ver, na verdade ficou foi a pensar nos hábitos lá de casa e a imaginar o piorio!
Repito então: Uma dança sensual? Alguma coisa que ouviu na televisão, nalguma novela!
Saio depressa, agradecendo em silêncio aos "morangos com açúcar", enquanto olho estupefacta para a menina que trago pela mão e sentindo ainda o dito olhar, preso na parte inferior das minhas costas.

vou veri



- Tantes anes depois e inda duran?
- Duran, duran!




segunda-feira, maio 23, 2005

remodelações

Vou roubar o horizonte e pô-lo no écran do meu pc para que hoje possa ver o céu para lá das quatro paredes que me cercam. Vou roubar o vento e deixá-lo soprar no meu ar condicionado para que perceba o cheiro único da realidade. Vou trazer o sol e dependurá-lo no meu candeeiro para que luz fluorescente tão opressora se reduza à sua opacidade. Vou gravar no meu telefone uma lacónica mensagem para quando o trabalho me chamar: Adeus.

domingo, maio 22, 2005

emoção e fé


Emoção é ganhar o campeonato! Fé é assistir ao jogo com uma garrafa de champagnhe e ir bebericando a vitória!!!
Benfica é campeão! Benfica é campeão! Benfica é campeão!


sexta-feira, maio 20, 2005

dois estranhos

Calçada abaixo, entre o tricotar das pernas e as agulhas dos saltos, caminhavam lado a lado em silêncio de palavras, passo certo, fictícia marcha de recrutas, a entreter a ausência do encaixe de ancas que os entrelaçara noutras ruas e a antecipar os gestos próprios daquela despedida. Teria bastado seguirem o seu rumo até que a estrada os separasse por necessidade. Teria dito mais o cruzamento divergente que o beijo quase casto que de surpresa lhes uniu os lábios.

quarta-feira, maio 18, 2005

encontro de escritores

Hoje, por casualidade, encontraram-se ao jantar uma jovem prostituta licenciada em Sociologia e o primeiro actor a ser contratado para, ao vivo e sem duplos, morrer em cena encarnando um homem-bomba. Falaram de trivialidades, impotência e explosivos potentes, argumentos de vida e de filmes, razões profissionais e humanas e, sobretudo, do serão que os esperava a pôr a escrita em dia neste mundo de sub-dotados.

o meu irmão

Soltei uma gargalhada sonora. Depois outra. Vinda de longe, chegou-me às mãos a enciclopédia "Como saber viver". A mesma fonte ou cartilha na qual aprendi as primeiras palavras: sol, mar, praia e vida! Ou, como tu dirias, "baby steps". Simples, tradicionais e infalíveis receitas de família do habitual autor - Tenho o melhor irmão do Mundo!

terça-feira, maio 17, 2005

carpindo pedaços

Esfrangalhou-se! Desfez-se todinho! - Dizia ela a falar do seu coração como quem fala de primo ausente e fazendo sentir nas palavras o acto de despedaçamento a que fora sujeita. Parecia até que se ouviam as onomatopeias dos cacos à solta por dentro dos seios. Não se conhecia mestria que pudesse dar forma ao órgão escangalhado nem cola forte que sustivesse os pedaços lá por dentro do seu corpo. Acompanhava de prantos as frases sufocadas por soluços, esborratando a tinta que punha nos olhos para o alongamento dos cílios. E nada havia que alguém lhe dissesse que lhe fizesse agrado ou consolo, porque dor maior ninguém jamais sentira nem poderia sequer almejar sentir, ou seria um desrespeito. Então, calavam-se à sua volta, engrandecendo o ruído do coração esmigalhado que ecoava na mudez das paredes caiadas como selando o pacto do seu sofrimento. Por ali se quedavam velando o defunto coração feito em pedaços e já adivinhando outras má sortes.
Já lá ia algum tempo sem morte aparente, o que levantava suspeitas de que o coração estaria inteiro ou de algum estranho mister que o fizera resistir destroçado. Verdade se abone que as queixas se haviam reduzido bem como o barulho do seu chocalhar. Pranto seco ou esporádico já não enfeitava de dor os suspiros e as lamúrias. Levantou-se o decreto de luto e os arraiais de carpideiras a quem o sustento já pesava na dispensa. Foram-se à rotina com o esquecimento da tragédia mas não sem que ela ainda lhes dissesse que jamais existiria reparo que lhe acudisse e que a morte era agora a sua vida.

segunda-feira, maio 16, 2005

rio morto rio posto

Morte e vida se misturam à beira do mesmo complacente rio, que baptiza o renascer da magia, como se em dívida estivesse pela ilusão criada. E vejo correr para a foz uns olhos tristes enquanto prendo os meus nest´outros que súbitos de luz me encantam, fixando crente a nascente constante do tempo e das suas inesperadas dádivas.

sábado, maio 14, 2005

bailando






Sobre um ninho de lagartos. A vitória ! SLB!






sexta-feira, maio 13, 2005

sensual


A sensualidade é uma marca indelével. Tatuagem única e eterna, receio de muitos, gáudio de poucos. É o corpo que se transcende no mais pequeno dos gestos, clamando a sua unicidade e a sua existência. No porte, no andar, nos lábios, no olhar. Reerguendo-se sublime porque em alguns jamais conhecerá a morte.



o velho, o rapaz, o burro e o blog

Diz o rapaz ao velho - ande, sente-se vocemessê no burro que é mais velho. E o velho monta o burro enquanto o rapaz faz um post. Não tarda que se saiba, e não pelo haloscan, que houve quem não gostasse - Porque é uma maldade, exploração infantil e o diabo a uma.
Sai o velho do burro e monta o rapaz. Mais um post - Pobre do velho, malvado do rapaz que tem boas pernas para ir a pé e o diabo a uma.
Sobe o velho, vão os dois no lombo do burrico - Ah, e tal, porque pobre do burro e a defesa dos animais e o camandro e o diabo sempre a uma. Vai daí, desmontam os dois, apeados os três, novo post, novas no blog - Porque são umas bestas, porque tendo um burro vão a pé e que burros são eles e, o diabo a uma!!! Livra!
A moral é velha. Tão velha quanto o velho, tão actual quanto o rapaz e quem não fizer caso dela é um burro! E disto dou eu brado no meu blog. Tenho dito!

quinta-feira, maio 12, 2005

tarde ao sol

Vem, chamo-te ao meu engano, sem engenho que dê arte às minhas palavras mas com os olhos presos numa virtual presença. Que bom saber-te, ainda assim, demoradamente ao sol por mim plantado neste céu imaginário, onde diariamente me recolho e aqueço. É esta a casa que nos sobra, onde dou acolhimento, onde recrio ilusões desfeitas, onde travo batalhas vencedoras e perdidas, onde jogo atitudes, onde ganho alento. Estende pela tarde fora a velha toalha azul na areia destas paragens e escuta a minha voz no silêncio das parcas novidades, vê o sorriso que não me abandona porque como dom nasceu comigo a par das lágrimas poucas, salpicos inconsequentes, que dizem tão pouco de mim quanto as mais tolas senteças. E sei bem que não preciso de chamar-te, nem ao engano, nem à verdade, porque quando cai a tarde, sei-te ainda demorado, adivinhando o presente por entre os seixos com que assinalo o meu caminho.

quarta-feira, maio 11, 2005

noite em branco

Ah, e quando as sombras ganham nome,
forma e vida,
e suspensas balouçam compassadamente,
anunciando o tempo e a noite
que crescida, passa desvairadamente
em branco, enorme, limpa.
E como pêndulo, turíbulo, desconcertantes,
em pancadas ocas, certas, sucessivas,
passam aos sonhos, do vestíbulo,
aguerridas, sombras visitantes,
até que o sono as dê por vencidas
ou na manhã se recolham hesitantes.

segunda-feira, maio 09, 2005

simbiose







Entre o sonho e a prevenção, entre os pés e o céu, entre o real e a felicidade - a dois.








sexta-feira, maio 06, 2005

quem sois vós?

Estava Julieta à janela em espera por seu amor mas em vez de Romeu aparece-lhe um outro estupor.
- Quem sois vós?
- Ninguém!
A resposta seca e curta pareceu-lhe conhecida, não fora El Rei não sei quê que usara a mesma saída? El Rei não lhe parecia, não lhe encontrava semelhança, não lhe via nos traços a Casa de Bragança. De Romeiro o disfarce pareceu-lhe presumido, onde estaria Romeu, seu entre todos mais querido?
- Ao que vindes?
- Por vós!
- E vedes Romeu?
- Nobre Senhora, esse pobre, desta vez ensandeceu...
- Que dizeis? Que atoarda?
- O que ouvides Senhora, está no Miguel Bombarda!
- Meu Deus, meu Deus, Dai-me Vós a valentia, pois se ainda há dois dias o meu ventre ele aquecia... mas como sabeis de Romeu?
- Julieta, Senhora, ele não passa de um louco e das suas recentes façanhas já sabe todo o povo!
- Façanhas? Mas de que falais?
- De vós Senhora e das demais...
- Mentides, não vos acredito.
- Eu não sou como ele, não dou o dito por não dito.
- Sois um alcoviteiro disfarçado de Romeiro!
- Serei o que quiserdes mas pelo menos não ando a comer duas mulheres...
- Calai-vos sois um mentiroso, Romeu será muita coisa mas não é homem fogoso!
Ao quarto se recolheu, Julieta atordoada, crendo que estaria a delirar acordada. Pensou e repensou e viu alguma verdade nas palavras que ouvira naquele triste fim de tarde. Pois se em tempos assim fora... não levara ele ao engano a outra pobre senhora? Relembrou embevecida as tardes e noites de cama enquanto a outra mulher se julgava a única dama! Ah, Romeu infiel! Quase lhe parecia agora um torpe romance de cordel. E as juras de amor trocadas ao som de harpas e liras? Teriam sido as últimas pelo dia das mentiras? Não, não, eram mais recentes, se ainda na sexta passada tinham sido imprevidentes! Pelo almoço é certo... teria sido mais à noite que ele se armara em esperto? Oh, Romeu que me dizes tu agora? Que podemos ser amigos e ir almoçar fora? Pois se em Fevereiro passado acabaram o almoço unidos em pecado!
Julgava-o capaz de tudo, estava louco o coitado! Mas enquanto conjurava, ao seu destino matreiro, já à janela assomava o tal do alcoviteiro.
- Porque sofreis Senhora por tão desmerecido cobarde?
- Porque fui tonta Romeiro e agora já é tarde...
- Mas tarde porquê? Nunca é tarde Senhora, para correr com os malandros à paulada de vassoura!
- Ide, ide-vos depressa que já chega minha aia e vem com muita pressa...
Entra a aia nos aposentos e interrompe Julieta ao choro e aos lamentos.
- Senhora, Senhora, trago-vos aqui um recado, trouxe-mo em mãos, de D. Romeu, um criado.
- Dai-mo, dai-mo Ana, minha aia!
- É de Romeu Senhora?
- É de Romeu o louco...
- Que diz ele Senhora?
- Que lhe soube a pouco, que não fez por mal, que está internado num hospital, que ouve vozes e sons de corneta, que lhe perdoe... Conversa da treta!
- Que ides vós fazer?
- Continuar a viver e que ele não me apareça, e que desta feita o meu coração, não fraqueje, não amoleça... E vós aia, Ana aia, não deixeis que ele vos chore na barra da vossa saia!
Caí o pano em tão desolador cenário e assim culmina a história de Romeu o Otário.

quinta-feira, maio 05, 2005

prece felina






Agradeço a ração de todos os dias, a água fresca e o cestinho acolhedor. Prometo que vou ser sempre uma boa gatinha e que não volto a cair em tentação. Ron Ron.






asas de silicone

Quando as asas lhe caíram no chão tapou com as duas mãos o sexo que até então deixara a descoberto com alguma aparente inocência. E a questão não é a do sexo dos anjos mas a da queda das suas asas. Tendo em conta que o mês corrente não era o da muda da pena só podia dever-se a uma revelação. As revelações têm caracter divino e como tal devemos humildemente agradecê-las. Acenda-se a vela, a iluminária e dê-se graças em preces ao Senhor. Já a outros, e mais favoritos, as asas haviam levado sumiço em troca de rabona e tridente mas, ao que se sabe, foi processo mais assumido e diverso. Ainda assim haveria semelhanças dignas de registo: a intriga, a luxúria, a disseminação dos males - Não iremos contudo por aí que a história ganharia contornos desapropriados. Ora, quando de asas caídas e de sexo mal coberto, fica a pessoa a nu e a sós com o seu carácter. Observem-se agora com cautela os movimentos e as atitudes e registem-se para a posteridade. Destes factos dar-se-ão contas à porta do Altíssimo:
- Ao que vens?
- Busco em Vós acolhimento.
- E crês ser esta a tua morada?
- Pois se até de asas me vesti...
- E quando as mesmas te caíram, que fizeste?
- Fui altivo Senhor!
- Não chames altivez ao egoísmo, à maldade e à arrogância, não há com ela nexo de causalidade. Vai-te, vai-te!
Nas costas, quando as voltou rumo a terras mais quentes, via-se-lhe ainda a silicone com que outrora colara os alvos, penungentos e esvoaçantes ornamentos.

soluções dúbias






Quem tem medo compra um cão!





quarta-feira, maio 04, 2005

(des)cabidela insólita

Punha o frango de parte e comia o arroz molhado. Abanava incrédula a cabeça recordando os últimos acontecimentos. Acontecia-lhe frequentes vezes ficar atónita com os outros. Quando assim era, recorria às poucas pessoas que ainda considerava moral e mentalmente sãs e expunha-lhes os factos: Achas que isto tem cabimento? - Ficava aliviada com a resposta negativa - Não, isso não tem qualquer cabidela! - E não tinha!
Parecia-lhe que ultimamente, para servirem o seu desenfreado egoísmo, algumas pessoas esqueciam as regras mais simples da convivência humana. O respeito pelo próximo. Algures por entre o prato escondia-se uma pequena farpa de osso. Das que são letais. Ria aliviada por não lhe apetecer morrer assim nem de outra forma. Nem tão pouco ficou supreendida quando do prato de carne de porco ao seu lado ouviu uma voz num tom ligeiramente lacónico: Vamos ser amigos. Sabes bem que és tu quem me tenta a carne!
Livra! - Pensou - Quanto mais não vale ser vegetariana!

terça-feira, maio 03, 2005

a bordo

Naquele fim de tarde saíram do Monte da Lua em direcção à praia. Deixaram as vassouras e os pós de perlim pim pim e subiram para o eléctrico entre risos e conversas próprias de passeata. Uma vez em cada ano abandonavam na Serra as suas moradas e misturavam-se com as gentes e o casario. Bruxas, fadas, gnomos, ogres e duendes, aperaltavam-se domingueiramente e acomodavam-se nos assentos, desfrutando pelas janelas a paisagem. Ao contrário do que rezava a lenda não havia dia certo para este evento. A verdade é que nem sempre era fácil ajustar as agendas mais ou menos preenchidas e ainda mais difícil era conjugar os humores e as vontades. Cada qual com seu capricho e superstição apontava uma data mais favorável. Reuniam-se datas e consensos na clareira junto à Peninha o que, regra geral, implicava toda uma longa noite de acesa discussão. Um porque tinha poção a meio que estava a fermentar, outro porque o encantamento das árvores não podia ser suspenso, alguns porque eram alérgicos aos pólens, outros porque a lua não era a mais propícia. Em tempos idos, tinham adoptado uma solução chamada de democrática mas que se veio a revelar muito pouco eficiente já que era sempre o mesmo grupo que levava a dele avante. Em reforço deste facto, vinham os pobres duendes que, minoritários, se viam quase sempre forçados a aderir à passeata pelo início de Abril o que, estava provado, lhes era prejudicial à frágil compleição.
Para solucionar esta e outras questiúnculas de vizinhança formaram um Colégio de Conselheiros que reunia os mais doutos representantes de cada classe existente e ao qual competia tomar decisão sobre os assuntos da comunidade mágica. Desde então, salvaguardadas as opiniões e as argumentações de cada um, o Conselho deliberava com sabedoria.
Apontado que ficara o dia três de Maio reservaram o eléctrico com a devida antecedência e fizeram-se ao caminho. Há já muito que verificavam que os humanos se entristeciam gradualmente e que mesmo as crianças, outrora tão aderentes à sua presença, os olhavam com cepticismo e descrédito. Estava isto por certo relacionado. A perda da fé no maravilhoso, deixava um vazio de difícil preenchimento. Por diversas vezes planeavam pequenas demonstrações de magia, aparições mais ou menos regulares, tentando recuperar o que parecia irrecuperável. Certo era que este efeito tinha drásticas repercussões nos seus poderes que se alimentavam da fé que neles faziam. Por esta fortíssima razão iam anualmente à Praia das Maçãs onde o mar se juntava com o vento e com as encostas para ali oferecerem as suas preces à Humanidade. Sabiam que as suas palavras seriam levadas pelas ondas até chegarem a algum coração onde se depositava a semente da magia. Então essa semente germinava e dava vida a personagens fantásticas e a sonhos diversos que, com sorte, se espalhariam pelos demais. Este ano, levavam ainda outra missão. Quando chegados à praia, em roda de mãos e almas, agradeceriam a semente fértil que, a bordo, lhes trouxera de novo a força, a magia e a coragem.

segunda-feira, maio 02, 2005

bichinho de conta

Bichinho de conta
Debaixo da pedra
Mora um bichinho
De corpo cinzento
Muito redondinho
Tem medo do sol
Tem medo de andar
Bichinho de conta
Não sabe contar
Muito redondinho
Rebola, no chão
Rebola, na erva
E na minha mão.
(lengalenga infantil)

a longa viagem

Quando partiram para o mar não sabiam a data do regresso. Velejariam à sorte dos ventos e das marés até que terra os cativasse de novo. Há nos homens o desígnio das águas e dos céus a par da inevitabilidade da terra. Há nos homens o desejo de fuga e de aventura, a ânsia do conhecimento em detrimento quantas vezes do que na verdade nunca chegaram a conhecer. Anos de navegação concêntrica trouxeram a embarcação ao porto de partida. Deslumbrados, acreditaram ser aquela a terra prometida e correram a deixar semente no Novo Mundo. Não foi à toa que ficaram desarmados quando alguém, vagamente conhecido, ironicamente lhes disse: marinheiros de água doce jamais se devem fazer ao mar.