o medo e a mudança
Estava abrigado da chuva e do sol por debaixo da arcada. Era um bom sítio aquele. Vagara com o desaparecimento do Jaquim. O Jaquim tinha jeito para o ofício. Aprendera a dar graxa nos sapatos. Fazia zunir o pano puxando o brilho na pelica do calçado. E os doutores por lá paravam. Punham o pé em cima da caixa mostrando a peúga escura e os pelos nas pernas. Levara sumiço o Jaquim. Ninguém mais lhe achara referência nem rasto. Agora estava ali. Tomando o seu lugar. Não dava graxa que não tinha caixa nem pomada e as dores lombares desaconselhavam o abaixamento. Esperava que a caridade lhe recompensasse a espera enquanto aprendia o jeito de saber esperar. E não era coisa fácil isto de esperar pelos outros e pelo seu acaso, muito menos quando a fome já lhe mordia. E havia a solidão que ninguém parava para trocar duas palavras. Uns porque já tinham dado, outros porque não queriam dar. Uns porque davam só a medo do juízo final ou como paga de algum pecado e outros que não davam que o que tinham era pouco e ganho com trabalho.
Era dura a indiferença dos dias e das pessoas. E nesta dor já quase nem sabia porque viera ali parar. E que importância podia ter? Porque seria importante o que levava um homem a ocupar um posto? Alguns acreditavam que no passado estava a chave do presente. Já sabia que assim não era. Não havia chaves para o tempo. Era a vida e o que se podia ou não fazer por ela. E o que fora o homem não explicava o que era nem o que seria. Como não se explica porque sai a lotaria ao rico e a doença ao pobre.
Pela manhã sentava-se no banquito e ali ficava até à hora de uma bucha de pão. Olhos vivos entre as rugas que lhe pesavam nas pálpebras. Por vezes largava a fel no agradecimento: Que Deus lhe pague! - Como se Deus pagasse alguma coisa. Como se fosse d´Ele o banco do vaticano e o dinheiro das esmolas.
Nesta espera e nestes poucos sentimentos arrematava os ganhos do dia. Nesta falsa liberdade que nos vem de não termos medo. Como tem medo quem não tem nada? O medo estava associado à posse, como a liberdade parecia vir com a despoja. Mas a ironia da vida está nos seus repentes. Na mudança dos pequenos nadas. E por vezes chega tão disfarçada que nem percebemos a cara da mudança, como secalhar não perceberemos a cara da morte.
Franzinito, todo olhos e pouco pelo, farejara o chapéu e sentara-se entre as suas pernas. Aconchegara-se na velha fazenda das calças como quem dizia que estava em casa. Estivera quase a correr com ele - Vai, vai procurar dono que te estime! - Era teimoso o cachorro. E pouco esperto! E à hora da bucha fora atrás dele como quem perseguia o que era seu. Estava bem arranjado. E pela tarde fizera-se com ele à noite e à manhã seguinte. E os doutores deram-lhe prosa que se encantavam com o bicho. E moeda para o seu sustento. E fora-se a liberdade e viera o medo com a afeição. E vieram os jornais que revendia por mais um pouco. Não havia moral, nem fim para a sua história. Sempre que houvesse lugar no coração a vida se encarregava de trazer o medo e a mudança.