quinta-feira, outubro 28, 2004

o medo e a mudança

Já há alguns meses que tinha marcado lugar em frente à pastelaria. Aprendera a saber quem lhe deixaria uma moeda no chapéu que pusera no chão. Mais difícil era resistir a ler o jornal. Não parecia bem um pedinte a informar-se. Não. Isso das linhas impressas era para os doutores. Os que bebiam a bica de pé com a toga debaixo do braço. Via-os a entrar, via-os a sair. Quase todos levavam o mesmo tempo. Tempo nenhum. O café era a pausa social apressada. Não lhe cheiravam o aroma nem lhe sentiam o gosto. A ele não o olhavam sequer. Nem à entrada, nem à saída. Não lhe deixavam moeda nem nota. Não lhe davam sequer reparo.
Estava abrigado da chuva e do sol por debaixo da arcada. Era um bom sítio aquele. Vagara com o desaparecimento do Jaquim. O Jaquim tinha jeito para o ofício. Aprendera a dar graxa nos sapatos. Fazia zunir o pano puxando o brilho na pelica do calçado. E os doutores por lá paravam. Punham o pé em cima da caixa mostrando a peúga escura e os pelos nas pernas. Levara sumiço o Jaquim. Ninguém mais lhe achara referência nem rasto. Agora estava ali. Tomando o seu lugar. Não dava graxa que não tinha caixa nem pomada e as dores lombares desaconselhavam o abaixamento. Esperava que a caridade lhe recompensasse a espera enquanto aprendia o jeito de saber esperar. E não era coisa fácil isto de esperar pelos outros e pelo seu acaso, muito menos quando a fome já lhe mordia. E havia a solidão que ninguém parava para trocar duas palavras. Uns porque já tinham dado, outros porque não queriam dar. Uns porque davam só a medo do juízo final ou como paga de algum pecado e outros que não davam que o que tinham era pouco e ganho com trabalho.
Era dura a indiferença dos dias e das pessoas. E nesta dor já quase nem sabia porque viera ali parar. E que importância podia ter? Porque seria importante o que levava um homem a ocupar um posto? Alguns acreditavam que no passado estava a chave do presente. Já sabia que assim não era. Não havia chaves para o tempo. Era a vida e o que se podia ou não fazer por ela. E o que fora o homem não explicava o que era nem o que seria. Como não se explica porque sai a lotaria ao rico e a doença ao pobre.
Pela manhã sentava-se no banquito e ali ficava até à hora de uma bucha de pão. Olhos vivos entre as rugas que lhe pesavam nas pálpebras. Por vezes largava a fel no agradecimento: Que Deus lhe pague! - Como se Deus pagasse alguma coisa. Como se fosse d´Ele o banco do vaticano e o dinheiro das esmolas.
Nesta espera e nestes poucos sentimentos arrematava os ganhos do dia. Nesta falsa liberdade que nos vem de não termos medo. Como tem medo quem não tem nada? O medo estava associado à posse, como a liberdade parecia vir com a despoja. Mas a ironia da vida está nos seus repentes. Na mudança dos pequenos nadas. E por vezes chega tão disfarçada que nem percebemos a cara da mudança, como secalhar não perceberemos a cara da morte.
Franzinito, todo olhos e pouco pelo, farejara o chapéu e sentara-se entre as suas pernas. Aconchegara-se na velha fazenda das calças como quem dizia que estava em casa. Estivera quase a correr com ele - Vai, vai procurar dono que te estime! - Era teimoso o cachorro. E pouco esperto! E à hora da bucha fora atrás dele como quem perseguia o que era seu. Estava bem arranjado. E pela tarde fizera-se com ele à noite e à manhã seguinte. E os doutores deram-lhe prosa que se encantavam com o bicho. E moeda para o seu sustento. E fora-se a liberdade e viera o medo com a afeição. E vieram os jornais que revendia por mais um pouco. Não havia moral, nem fim para a sua história. Sempre que houvesse lugar no coração a vida se encarregava de trazer o medo e a mudança.

a ti João


O meu melhor amigo queria ser astronauta.
Mas ainda não foi à lua.
Vi-o crescer ao pé de mim.
Mas nunca será velho.
O meu melhor amigo faz hoje anos.
Mas eu dou-lhe os parabéns todos os dias.

quarta-feira, outubro 27, 2004

os parabéns estão na rua

o erro divino

Estava deitada ao sol. A temperatura morna do corpo convidava-a a adormecer. As vozes ao longe embalavam-na para o limiar do sono. Pusera o livro a servir de almofada. Quando já quase se abandonava aos imaginários braços de Morfeu, uma vaga épica derrubou os seus salpicos e fê-la estremecer. A pele, subitamente arrepiada, acordou-a para a realidade. Estremunhada, coçou os olhos, ergeu o tronco e olhou em volta. As crianças barulhentas haviam desaparecido, a senhora gorda que fazia barulho a comer batata frita não estava lá. Não havia sinal de gente. Teria o mar na sua fúria tragado a humanidade? Sempre supusera que um dia pudesse ser assim. O mar já farto de tanta banhoca, xixi, restos de comida e cigarros, erguer-se-ia majestático numa apoteótica e fria vingança. Mas porque ficara ela ali? Porque teria o mar deixado que sobrevivesse? Mais angustiada que intrigada, pôs-se de pé num salto e agarrou-se às costas da espreguiçadeira. E agora? Ao redor só se ouvia o rebentar suave das ondas em múltiplos e doces carneirinhos.
Correu à beira-mar em busca de pessoas, de traços de presenças. Com as mãos em concha gritou: Está aqui alguém? - Nada. Respondeu-lhe o silêncio sonolento. Começava a sentir um leve desespero. Um nó na garganta e um frio no estômago. Caíu na areia e começou a chorar. Chorava a solidão. Chorava as mágoas do mundo vazio de pessoas e pecados. Ergueu os olhos de água para o céu e perguntou-Lhe: Porquê eu? Porquê eu Senhor?
-Para que saibas minha amiga que também Eu posso falhar!

terça-feira, outubro 26, 2004

pensamento


"comer, dormir e brincar... comer dormir e brincar...
Estou farto desta vida de cão!"

segunda-feira, outubro 25, 2004

oferenda

Seja este o barco dos sonhos. Que veleje rasgando a noite até se perder na madrugada. Barco de vela desfraldada à bolina na rota da lua. E à lua chegaria de mansinho roubando dois nacos de prata.
E da prata faria presente para pôr aos pés da sua amada. E tomaria a sua mão entre as suas e o seu corpo entre os seus braços como tomava o rumo da lua só para lhe tirar dois pedaços.
Era este o barco dos sonhos feito para assim navegar ao rumo mais luminoso que à noite se pode avistar... Fosse esta a sua noite toda feita a velejar.
E ao barco já punha asas para das águas se apartar quando fosse chegado o momento de a lua poder agarrar. E à lua pediria perdão pela prata que levaria, deixar-lhe-ia o barco em troca que no sonho já partia.
Da vela fizera capa, manto alvo, nobre e belo como príncipe a trajaria à porta do seu castelo. Morada de sonhos nocturnos, asas, barco, lua e mulher por quem dera à noite o destino de prata pura lhe oferecer.


o regresso

Voltara à casa que deixara. Ao seu peito. Ao seu espelho. Voltara a ver a sua imagem reflectida no verde forte da rebentação das ondas. E na espuma. A espuma branca que enfeita de pérolas o mar. Trazia as preces na boca e a chave no bolso. O livro. As páginas descrentes de serem lidas pelo fim de tarde, esventradas quase a meio pelo separador de papel. E os apelos esperados. Alguém que lá de longe a queria recordar e não se lembrava de como a esquecera. Que o esquecimento dói até pela lembrança das poucas palavras magoadas. Guardara essas palavras como remédio. Remédio para o amor pressistente. Tomava duas ou três por dia. Das de sabor mais amargo. Daquelas palavras de fuga, palavras de desencanto e desencontro. Era um bom remédio aquele. Dava por si a rebobinar os meses de solidão. A ver no écran do mar daquela tarde quem ali a pusera assim ao vento do mistério e do acaso. Mas dava por si já diferente. Indiferente. Outros olhos, outra luz, outro parto doloroso do qual saíria pelo seu próprio pé. E traçara outros passos como traçaria outros caminhos. E não sabia bem quais. Mas afogara, exterminara do seu peito a apatia. Estava ali ou noutro lugar qualquer. Podia ser à beira rio ou no bulício da cidade. Era esta a sua casa. Fechada há tempo demais. Há dias e noites sem conta. Que as portadas cerradas lhe traziam a dor de outros passados que jurara não repassar. E abria as janelas e dava ar e vento aos panos de cheiros dôces. Secos agora no estendal ao sol. E dava largas à abertura ampla da porta pela qual desfilaria um outro futuro.
Era ali que importava regressar ou ir como pela primeira vez. Ía-se sempre pela primeira vez ainda que quando de regresso... Era sempre a primeira vez. E não havia vezes melhores, só diferentes. E não houvera escolhas, só os escolhos das palavras imerecidas.
Trocara os olhos com outros olhos e outros e mais outros, até trazer a cor aos seus. Trocara as palavras por outros ditos mais suaves e doces. E que importava fossem enganos! Que mais enganos lhe traria o mar quando rebentava fresco nos seus pés? Quantos mais? Poucos sabiam desta ironia. Da graça que tinha a cura pelo desengano, pelo castelo flácido de cartas que o vento fizera desabar. Ainda menos sabiam da frescura do sopro, do arrepio de alegria que lhe dava aquele regresso.

a revelação

Para lá deste mar calmo, as águas rebeldes. Para lá desta mulher também a outra, sempre a mesma (!). A que se mostra destapando cautelosamente mágoas e lágrimas para só depois desabar em sorrisos. E com os olhos fitos no regresso, a nostalgia das palavras que não voltará a receber com a alegria das letras que aprenderá a desenhar. O mistério para lá dos mistérios. A revelação: vale sempre a pena acreditar!

sexta-feira, outubro 22, 2004

bastet ao sol

Ó glorioso deus Rá. Ó deus dos deuses, Bastet se curva e agradece. Bastet a deusa dos gatos de um Egipto esquecido, terra de felinos que se alongam sob a tua força e a tua graça que reluz nas pelagens mais diversas. Hoje Bastet amanheceu embevecida. Sentiu a magia da vida nos teus raios e esqueceu as tristezas. Saíu à rua de ar malandro e garras de fora. Gata Bastet. Lambeu as feridas que aos poucos cicatrizam e lá foi bamboleante rua fora. Ágil de corpo e pensamento, interiorizou o teu calor e fez-se ao mundo, à alegria que se oferece a cada esquina e que por vezes no nevoeiro cuidamos estar perdida. Bem hajas deus Rá e eu te venero. Bem hajam os que andam perdidos e se encontram na tua presença, ronronando na praia, na cidade, nos becos, nos campos, aqui e por todo o lado. Que ao sol a solidão é a mesma mas decididamente a atitude é diferente.

quinta-feira, outubro 21, 2004

este ramo ainda

Sou este ramo ou outro qualquer. As folhas que de fé se soerguem.
Sou a força frágil que vence a muralha das águas. A força e a fé.
Sou a voz calada, as garras afiadas, os passos apressados ao redor da sala, da mesa, do quarto, os gestos nervosos, a raiva contida e o grito!
Sou eu que faço da fraqueza força e luta e mais luta ainda. Sou eu que desencantada me encanto com outra voz qualquer. Com qualquer outra voz amiga.
Sou eu que lanço amarras e apelos. Que respondo ao silêncio com palavras e ao desprezo com carinho e amor ainda. Sou eu que me reivento noutro corpo qualquer. Que me ergo e suspiro e respiro, respiro ainda! Sou este ramo ou outro qualquer, que se verga mas não quebra, na velhinha sabedoria do balouçar do junco.
Sou este ramo resistente, feito de sangue, dor e fibra. Sou eu sou eu ainda!

quarta-feira, outubro 20, 2004

tributo ao passado

Naquela noite eu soube que a felicidade que sentia se desvaneceria em breve. Pude ler no alegre crepitar da lareira, como se de uma antevisão se tratasse, que aquele era um tempo fugaz. Como fugazes têm sido todos os momentos de felicidade na minha vida. Reunia ao pé de mim a imagem da plenitude. O meu adorado pai e o meu também adorado cão que se deitara aos pés dele junto ao quente do fogo. Era um quadro perfeito: um homem lindo de sessenta e oito anos e um labrador louro, cor de ouro e mel que emprestava um ar de paz à reunião de família. Não esquecerei nunca a clara percepção que tive nessa noite. Como se o excesso de alegria me despertasse todos os sentidos para a realidade de a perder. E assim foi. Ambos doentes pouco tempo depois me deixaram. Nem por isso passei a ter medo da felicidade. Aprendi apenas a disfrutá-la sempre que ela, às escapadelas breves e fortuitas, se me oferece ao disfrute. Aprendi a guardar e a recordar com carinho esses poucos quadros perfeitos. Um namoro junto à "correnteza" em Sintra, uma tarde no parque do Campo Grande, um passeio de barco de Luanda para o Mussulo, o moinho da Azóia ao entardecer...
Este é um tributo ao passado e também ao presente.

terça-feira, outubro 19, 2004

a metamorfose

O seu corpo sobrava-lhe. Sentia na rua os olhares colados, como se pudessem adivinhar que a sua lingerie condizia com o blusão vermelho de cabedal. Havia esta outra mulher que coabitava dentro do seu corpo, deusa da sensualidade, que lhe tomava os olhos em tons de verde e lhe emprestava um ar fatal. Estava habituada às metamorfoses do seu corpo, a que os seus gestos fossem tomados e o seu andar alterado. Nesses dias, o seu perfume era mais intenso, os seios mais volumosos e a voz mais ampla e grave. Só ela se dava conta deste contraste. Da luta entre medo e desejo, entre criança e mulher. Só ela sabia que essa outra lhe tomava o mundo inteiro nos braços e fazia dele uma bola de cristal, que alcançava o cume para além da serra opressora e se deitava ao sol em terras distantes. Essa mulher que quando dançava, cerrava os olhos para não ver os outros e soltava de si lendas antigas, sabedoria infinita de todas as mulheres mas esquecida pelas demais. E os braços ondulavam e as coxas entreabriam como a deixar espaço ao homem desejado. Nesses dias temia por si rendida à herança de ser assim tão mulher.

segunda-feira, outubro 18, 2004

uma centelha

A tristeza dera lugar à aceitação. O fardo de amar quase sozinha que suportara tão alegremente fora-lhe despojado. Lia na partida o seu regresso e aprendera a preencher esse espaço. Dera-lhe o código de compromissos que já não faziam sentido e guardara para si o livro da vida. E apesar do cansaço, ainda vislumbrava a centelha divina do amor pelo desconhecido. Viriam muitos para criticar o seu rumo mas poucos para lhe acompanharem os passos e as noites que não queria passar ali. Percebia que tinha tempo e coração em sobra. Mãos abertas a dar e a receber. E olhando as costas que se lhe voltavam, lamentava o silêncio daquele homem ao qual ele se remetia por fuga e arrependimento, mas essa era uma cruz que nunca fora sua e que só por amor quisera carregar.
Não ficou pois surpreendida quando realizou que estas haviam sido as últimas lágrimas que chorara. Tinham vindo num sopetão. Guardadas dentro de si, por detrás dos seus olhos, brotaram-lhe com o orgasmo, como explosão última da luta que travara. Eram as perguntas a que ficara sem resposta, as carícias pendentes de um amor pendente na reciprocidade. Eram a sentença de resignação. Também ela nada mais pediria. Reaprendia agora a amar assim. De forma mais incompleta ou apenas diferente. Nos espaços que ele lhe deixava floresceriam novos projectos e, sabe Deus a que custo, guardava residual uma centelha de esperança. Uma centelha da que se faz o amor verdadeiro e que ela tão plenamente conhecia.

orgulhosa ou tristemente só

Ontem fui à cidade. Encaminhei os meus passos por entre as ruas que há muito não via com aquele ritmo demasiado austero de quem disfarça a insegurança. Observei os outros, as gentes que se cruzavam distraídas e indolentes com a "griffe" citadina colada nas roupas e no corpo. "Olhei-os de longe e mirei-os de perto, que quem não vê caras, não vê corações". Vi mulheres demasiado magras e taciturnas como que pedindo desculpa ao Criador por terem nascido. Mangas compridas que tapam as mãos, detalhe de moda infeliz, recriando num misto de vergonha e pano, as fraldas de criança que se enrolam nos dedos nervosos e carentes. Preto, demasiado preto, apelando mais à depressão que à sedução... Nem a zona lombar semi-nua lhes emprestava grande encanto, descobrindo a lingerie e as nádegas num jeito de alma sem abrigo. Top´s e camisas sobrepostas sem critério aparente, tudo se compondo para uma imagem infeliz e errática. Talvez por isso os homens me pareceram demasiado compostos. Com cautelas femininas na escolha dos detalhes e acessórios, carregando o jugo que outrora pertencia às mulheres, da salvaguarda da suavidade, da fragilidade e da estética. Caminham bamboleantes, deixando um rasto de perfume adocicado que quase lhes apaga o reconhecimento da sua masculinidade.
Observei os mais velhos e pareceram-me cansados. Demasiado cansados. Com o cansaço de quem já cumpriu o seu destino e não vislumbra ninguém para a passagem do testemunho. Dei meia volta mas volta e meia ainda me recordo desta imagem que me ficou: geração curvada ao peso da incerteza, geração instavelmente suspensa numa ou outra trave mestra que já antiga mas ainda firme, se sente quem sabe, orgulhosa ou tristemente só.

sexta-feira, outubro 15, 2004

unidos venceremos

Foi o que disse o meu computador quando pifou ao vírus da gripe que me agarrou: Unidos venceremos - E venceram!- Vi-me pois a fungar perante um écran onde se lia uma missiva queixosa relativa a uma qualquer doença na memória. Ora, se a memória (a minha) não me falha, a última vez que isto me aconteceu fiquei info-excluída durante todo o longo tempo necessário a que o meu espírito de iniciativa acordasse para proceder ao carrego do bicho para a loja.
Hoje, porque a vergonha de ter abandonado o Sol&Tude já me pesava, dei uma escapadinha a um computador amigo para junto de todos vós explicar o motivo do meu silêncio e para prometer para segunda-feira o meu regresso em força e em jeito (espero!).
Atchim!

quinta-feira, outubro 07, 2004

à força de luta


Naquele dia de chuva sentar-se-ia no cais. A solidão encharcava-lhe a alma que quase afogada lhe morria aos poucos. Terapia de choque - dizia ela - invejando secretamente os que se podiam entregar ao namoro do sofrimento. Até a vigília da dor é só para alguns! Na falta de amor maior, que lhes faça cuspir a mágoa e seguir em frente, dão-se por inteiro ao seu torpor. Nunca entendera a justiça que presidia à repartição dos risos mas era sábia no entendimento dos esgares alheios. Com a cabeça enterrada nos joelhos, vencia-a o desalento como anestesia de morte. Fina, a dor da raiva, como farpa do orgulho moribundo, tomaria lentamente o seu lugar até que imensa e redonda lhe explodiria em grito de vida. Não há certo nem errado, nobreza maior ou menor entre raiva e desalento. Há a luta da sobrevivência e o destino mordaz que faz vergar os ombros mais fortes à sua crueldade. Há a alma que rasgando por dentro a lama que a soterra, vem à tona do corpo à força de luta, num dia de chuva num cais qualquer.

sexta-feira, outubro 01, 2004

abrir a porta

Aquela porta abria-se todas as manhãs para a deixar sair em direcção à praia. Quando o vento vinha do Norte, ouviam-se as vagas e sentia-se o cheiro salgado da maresia. Entre os intervalos das ondas, molhava os pés e recolhia as conchas que entrelaçaria pela noite em colares multicolores. Enfeitava a banca com panos transparentes que esvoaçavam alegremente entre os espanta-espíritos de búzios tintilantes. Já não se recordava como fora parar ali, àquela vida e àquela praia. Recordava-se vagamente da necessidade de fugir, de apanhar a pressa dos seus passos que a conduziriam a um outro lugar. Um mar de lágrimas fizera-a procurar o oceano e aos poucos a areia quente trouxera-lhe de novo o amor à terra. A subsistência fazia-se cumprindo as mais simples necessidades, deixando o tempo vago para o devaneio, para o calor e frio das estações sucessivas que agora, reparava, se anunciavam por sinais subtis como cheiros, flores e frutos diferentes. Nesta entrega, quase promessa, à simples vitalidade, compreendera o sem significado de outras vidas. A pressa que atropela a existência na busca de objectivos que, como bola de neve, criam necessidades, angústias e mais objectivos. Olhando o dia que nascera, era-lhe clarividente que esta era por certo a maior ambição, a serenidade de abrir quando queria a sua porta e sair livre para a praia.