segunda-feira, outubro 25, 2004

o regresso

Voltara à casa que deixara. Ao seu peito. Ao seu espelho. Voltara a ver a sua imagem reflectida no verde forte da rebentação das ondas. E na espuma. A espuma branca que enfeita de pérolas o mar. Trazia as preces na boca e a chave no bolso. O livro. As páginas descrentes de serem lidas pelo fim de tarde, esventradas quase a meio pelo separador de papel. E os apelos esperados. Alguém que lá de longe a queria recordar e não se lembrava de como a esquecera. Que o esquecimento dói até pela lembrança das poucas palavras magoadas. Guardara essas palavras como remédio. Remédio para o amor pressistente. Tomava duas ou três por dia. Das de sabor mais amargo. Daquelas palavras de fuga, palavras de desencanto e desencontro. Era um bom remédio aquele. Dava por si a rebobinar os meses de solidão. A ver no écran do mar daquela tarde quem ali a pusera assim ao vento do mistério e do acaso. Mas dava por si já diferente. Indiferente. Outros olhos, outra luz, outro parto doloroso do qual saíria pelo seu próprio pé. E traçara outros passos como traçaria outros caminhos. E não sabia bem quais. Mas afogara, exterminara do seu peito a apatia. Estava ali ou noutro lugar qualquer. Podia ser à beira rio ou no bulício da cidade. Era esta a sua casa. Fechada há tempo demais. Há dias e noites sem conta. Que as portadas cerradas lhe traziam a dor de outros passados que jurara não repassar. E abria as janelas e dava ar e vento aos panos de cheiros dôces. Secos agora no estendal ao sol. E dava largas à abertura ampla da porta pela qual desfilaria um outro futuro.
Era ali que importava regressar ou ir como pela primeira vez. Ía-se sempre pela primeira vez ainda que quando de regresso... Era sempre a primeira vez. E não havia vezes melhores, só diferentes. E não houvera escolhas, só os escolhos das palavras imerecidas.
Trocara os olhos com outros olhos e outros e mais outros, até trazer a cor aos seus. Trocara as palavras por outros ditos mais suaves e doces. E que importava fossem enganos! Que mais enganos lhe traria o mar quando rebentava fresco nos seus pés? Quantos mais? Poucos sabiam desta ironia. Da graça que tinha a cura pelo desengano, pelo castelo flácido de cartas que o vento fizera desabar. Ainda menos sabiam da frescura do sopro, do arrepio de alegria que lhe dava aquele regresso.