quarta-feira, outubro 27, 2004

o erro divino

Estava deitada ao sol. A temperatura morna do corpo convidava-a a adormecer. As vozes ao longe embalavam-na para o limiar do sono. Pusera o livro a servir de almofada. Quando já quase se abandonava aos imaginários braços de Morfeu, uma vaga épica derrubou os seus salpicos e fê-la estremecer. A pele, subitamente arrepiada, acordou-a para a realidade. Estremunhada, coçou os olhos, ergeu o tronco e olhou em volta. As crianças barulhentas haviam desaparecido, a senhora gorda que fazia barulho a comer batata frita não estava lá. Não havia sinal de gente. Teria o mar na sua fúria tragado a humanidade? Sempre supusera que um dia pudesse ser assim. O mar já farto de tanta banhoca, xixi, restos de comida e cigarros, erguer-se-ia majestático numa apoteótica e fria vingança. Mas porque ficara ela ali? Porque teria o mar deixado que sobrevivesse? Mais angustiada que intrigada, pôs-se de pé num salto e agarrou-se às costas da espreguiçadeira. E agora? Ao redor só se ouvia o rebentar suave das ondas em múltiplos e doces carneirinhos.
Correu à beira-mar em busca de pessoas, de traços de presenças. Com as mãos em concha gritou: Está aqui alguém? - Nada. Respondeu-lhe o silêncio sonolento. Começava a sentir um leve desespero. Um nó na garganta e um frio no estômago. Caíu na areia e começou a chorar. Chorava a solidão. Chorava as mágoas do mundo vazio de pessoas e pecados. Ergueu os olhos de água para o céu e perguntou-Lhe: Porquê eu? Porquê eu Senhor?
-Para que saibas minha amiga que também Eu posso falhar!