Esta é uma certeza do liberalismo selvagem, dos dias que correm, dos sistemas feitos por homens para homens. Acreditava eu que com Deus a coisa pudesse ser diferente. Do mais comezinho podemos extrair, se estivermos atentos, grandes ensinamentos prático filosóficos e até, porque não?, um conhecimento teológico mais profundo e realista.
Acontece que ontem, desesperada por uma crise de rinite alérgica que durava desde a manhã, lamentava eu a avaria do meu aspirador supersónico que, entre outras utilidades, me serve também como purificador de ar. A avaria ter-se-á dado mais por mea culpa do que propriamente por cansaço ou fragilidade da máquina que me serve fielmente há uns sete para oito anos. Já lá vai uma semana que, por motivos de contenção de despesas, resolvi pôr-lhe no bucho não os caros e sofisticados líquidos que ao seu fino trato são apropriados, mas antes, ó heresia, um daqueles óleos de cheiro da loja do chinês. O gajo engoliu, estrebuchou, enrouqueceu e quedou-se mudo. Roguei então mil pragas e impropérios. Abracei-o, pedi a ajuda divina. Limpei-o e tentei tornar a ligá-lo mas nada o reanimava. Desgostosa mas conformada, arrumei-o no seu cantinho e fiz contas dramáticas à vida a pensar na sua reparação.
Mas ontem, dizia eu, enquanto maldizia a minha alergia e pensava numa forma eficaz de perfurar cruelmente o meu nariz, tive um acesso de fé, uma premonição, ou coisa semelhante para a qual me falta um vocábulo mais santificado. Dirigi-me à despensa e dei-me ao trabalho de tirar de lá o adoecido aspirador. Enquanto lhe enchia o depósito de água pensava em como seria um milagre se ele se recompusesse e desatasse a trabalhar cheio de força, naquela infernal mas já saudosa barulheira que atormenta a paciência de qualquer um. À cautela, preparava-me para o pior e contabilizava as boas coisas que tenho na vida. Aquela conversa medricas do tipo, deixa lá, pelo menos a tua filha nunca adoece, tem uma saúde de ferro... Eis que ligo o botão e... dá-se o milagre! Ressuscitado, o meu adorado aspirador começou a trabalhar como antes. Pleno de pujança. Uma mistura de inenarrável alegria com a garra das últimas forças de um valente estado de prostração alérgica, levou-me a aspirar o meu quarto, o meu colchão, edredões e almofadas, a cozinha, a salinha e, por fim já exausta, deixei-o a trabalhar sozinho, limpando o ar que me rodeava.
Quando me deitei à noite estava tão cansada que me esqueci de Lhe agradecer a felicidade que me dera e adormeci profunda e rapidamente. Cerca das três da manhã fui acordada pela miúda que mora comigo lá em casa. Trazia numa mão o coelho com que dorme e a outra, encostava-a à barriga queixando-se de dores. Escusado será alongar-me na descrição da insónia que se seguiu. Borrachinha de água quente, miminhos, água, sede, queixumes e mais miminhos. Enfim, não dormi nada. Quem me mandou a mim lembrar-me que o raio da miúda nunca adoecia? Deus há-de ter entendido que eu trocava a saúde da minha filha pela do meu aspirador!? Sempre me saíste um Belo Usurário! Ou, Diz lá, foi porque eu não Te agradeci? Seu, Seu... Capitalista Amuado!