quinta-feira, maio 04, 2006

à pesca na sarjeta

Para quem não me conhece, fica aqui a informação de que eu sou, por vezes, mulher de vastos recursos e fértil imaginação... Posto isto, vamos aos factos. Ontem, em desvelos de carinho maternal e descurando os conselhos dos fisiatras e osteopatas, carreguei a minha filha ao colo desde a porta da sua sala de aulas e disparates até ao veículo onde habitualmente nos transporto e que ficara estacionado quase de fronte do colégio. A rapariga ia encantada olhando de alto para os demais coleguinhas que, apeados, seguiam o seu caminho. Ora, num acesso de meiga exuberância, a dita miúda (que diga-se já está pesadita) jogou-se com ainda mais empenho ao meu pescoço fazendo com que uma das minhas argolas de prata, que habitualmente dependuro nas minhas orelhas, se desprendesse e saltasse para o chão, continuando a rolar sobre si própria em direcção a uma sarjeta.
Não sou uma mulher de sorte em trivialidades. Em trinta e nove anos de vida nunca me saiu um prémio em jogo ou sequer uma rifa. A manteiga do meu pão cai sempre virada para baixo. Tropeço sempre nas ocasiões mais inoportunas. Escolho sempre a fila do supermercado mais demorada, aquela em que o cliente tem um produto sem código de barras ou em que o multibanco avaria. Todo este passado dá-me a vantagem de encarar os factos com a lucidez dos azarados. Se pode correr mal vai correr mal. Sim... a lei de Murphy.
Está claro que a dita argola caíu mesmo na sarjeta e que me resignei à sua perda até porque sobre a grelha de ferro estava o pneu de um carro por sinal quase tão careca quanto a minha conta bancária.
Foi de noite, já em casa, que arquitectei o meu plano. Um íman de frigorífico, um cordel e uma cana. Fui armada destes recursos esta manhã, qual pescadora temerária que procura a sua sorte nas águas mais improváveis. Estacionei já com algum sobressalto. A expectativa acelerava-me o batimento cardíaco. Acocorei-me junto à dita e dei início à minha pescaria. Meus amigos... as reacções dos seres humanos são espantosas. Do espanto ao riso, da mais pura estupefacção à solidariedade espontânea. Eu própria quando cogitava sobre o figuraço que estava a fazer, tinha breves acessos de gargalhadas o que, presumo, mais reforçava o caricato da cena. Uma jovem senhora acompanhada do seu filho, ofereceu-me pastilhas elásticas para colar no íman com a teoria de que, depois de bem mascadas, poderiam servir para colar a argola e puxá-la. Assim, de cócoras sobre a sarjeta, mascando pastilhas e com uma cana na mão, fui finalmente vitoriosa nos meus intentos. Não da forma como tinha previsto. Porque nem sempre as coisas acontecem como planeámos. O puto, filho da senhora das chewings, ajudou-me a levantar a grelha com todo o entusiasmo do que lhe pareceu uma excelente ideia. Aposto que era a primeira vez que via alguém a pescar numa sarjeta e a brincadeira agradava-lhe. Olhava para mim com muita simpatia, por certo pensando que alguns adultos são menos adultos que outros. Bem, a grelha levantou-se e só depois, com a minha fantástica cana à qual entretanto acrescentara um clip na ponta, pescámos a argola. Fiquei contentíssima. O rapazito batia palmas. Foi uma festa! Das leis da Física recordei que a prata é anti magnética mas, mais valiosa, ficou-me a lição de que nem todos passam indiferentes. Há ainda uma esperança para a humanidade. E, quando queremos, até que conseguimos.

15 Comments:

Blogger Zu said...

E foto dessa cena fantástica, não há? :DDD
Isso fez-me lembrar uma célebre pesca à lente de contacto perdida, em que também houve um amável transeunte que quis ajudar... com a ponta do guarda-chuva.

3:34 da tarde  
Blogger Bastet said...

Não Zu, consegui evitar os fotógrafos que me perseguem sempre por todo o lado :)

4:08 da tarde  
Blogger mc said...

Percebo perfeitamente essa vontade de rir de nós próprias ao mesmo tempo que escondemos uma certa vergonha por fazermos a "figurinha" ridicula.
Mas valeu ou não valeu a pena?!?
:)
bjos da mc

6:25 da tarde  
Blogger fernando macedo said...

ri em silêncio e quase até às lágrimas... delicioso... parabéns; beijo.

1:07 da manhã  
Blogger LUA DE LOBOS said...

A autora Maria de São Pedro, a Papiro Editora e a Fnac têm o prazer de convidar V.Exas. a estarem presentes para o lançamento do livro GATO PEDRA no dia 19 de Maio, pelas 19.00h na Fnac - Cascais Shopping.

8:50 da manhã  
Blogger admin said...

Temos então o jogo perfeito que soma as partes desgarradas do mundo e num movimento inesperado constrói uma nova hipótese para a Humanidade. A Lei de Murphy poderá ser consagrada como lei da pós-modernidade e tem como corolário um aforismo do tipo: 'faças o que fizeres não vai adiantar nada'. É bom ler estes relatos do quotidiano que de uma maneira muito prática mostram o verdadeiro valor de uma argola de prata transformada em ternura.

2:45 da tarde  
Blogger Bastet said...

MC: valeu pois! valeu bem a pena porque tirei uma série de importantes lições além de recuperar a minha argola! Um beijo!

a-bordo: já sabes, quando vires alguém à pesca numa sarjeta a rir à gargalhada de si própria posso bem ser eu. Um beijo.

Ikivuku: A lei de Murphy está errada! O que nós fazemos faz a diferença. E quando, como foi o caso, fazemos figura de alienados pode bem acontecer que um milagre nos venha no anzol!A minha argola que era apenas uma argola tem agora um outro valor. Um beijo e obrigada por leres as minhas palavras.

3:27 da tarde  
Blogger vague said...

lol e lol
Esta merece ir para a antologia da apapedica :))
Deve ter sido fabulosa essa cena; gostava de ter assistido para te ajudar a rir:))
lol, só tu, Bastet

4:57 da tarde  
Blogger Mr. Lynch said...

Bastet; ao ler o teu post fui invadido pela incapacidade de não te poder avisar que os imans não "pescam" a prata. Mas tu própria descobriste isso...
Uma excelente mensagem de esforço e persistência. Quando desejamos muito uma coisa, que importa estarmos de cócoras numa sarjeta a "pescar". É de lamentar que nem todos os nossos esforços tenham um fim feliz como este.
:-)

6:13 da tarde  
Blogger th said...

É bom quando a humanidade nos surpreende, pela positiva claro.
E depois quando nos impomos a nós próprios, ultapassando o ridiculo e o caricato, é uma vitória bem gostosa. Sentimos nessas alturas que seria bem melhor viver assim sem preconceitos.Um abraço, th

8:48 da tarde  
Blogger Bastet said...

Lua de Lobos: Irei tentar estar presente e muito agradeço o convite :)*
Mr. Lynch: Obrigada pela visita e pelo comentário. Lá relembrei a custo que a prata não se pesca com íman :)*
Th: era bom sim que olhássemos para os outros despidos dos nossos preconceitos, sem pormos definitivamente na sarjeta quem dela se acerca. :)*
Vague: sabia que ias gostar desta minha aventura! pega lá um beijo amiga!

12:16 da tarde  
Blogger Alcabrozes said...

E que culpa tem o Eddie disto? É sempre o culpado... Livra!

pedro a.

1:24 da tarde  
Blogger Bastet said...

Eh, pá o gajo faz-me sempre rir quando não devo. A culpa dele é essa! :)

2:40 da tarde  
Blogger batista filho said...

O que não fazemos à cata de algo que nos é querido, hem?
:-)
Uma beijoca.

Obs. Das tuas crônicas, foi a que mais li. Valeu!

4:02 da manhã  
Blogger Bastet said...

:) pois é Batista, depois disto acho-me capaz de muita coisa! Eh, eh, eh!

3:52 da tarde  

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