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Uma relação para que resulte deve aliar duas componentes: uma grande amizade e um erotismo inabalável - isto é dito, mais ou menos desta forma, no já considerado como último filme do Bergman -
Saraband. E assim dito, quase parece inquestionável. Um processo químico no qual, adicionando em doses correctas aqueles dois elementos se obtém, sem surpresas, o resultado esperado.
Pensei em escrever a este fabuloso cineasta, expondo-lhe as minhas dúvidas, para não dizer as minhas certezas. Sendo optimista, e acreditando que a carta lhe chegaria às mãos, talvez
Saraband deixasse de ser o seu último filme e Bergman viesse de novo à cena, num acto de contricção, explicar que ao cabo e ao resto pode não ser bem assim.
A amizade e o sexo são, e aqui talvez inquestionavelmente, os dois melhores e maiores factores de aproximação entre dois seres humanos, mas nem pela sua junção podemos garantir qualquer sucesso duradouro. Primeiro porque, apesar de podermos ter a consciência de que nutrimos uma enorme amizade por alguém e de mantermos com essa pessoa uma relação erótica sublime, o medo, a imaturidade, a insensatez e/ou uma ambição emocional desmedida, podem sempre levar-nos a achar que falta mais
um não sei bem o quê, para que aceitemos que o amor se instale de forma serena em nós. Estou convicta em atribuir culpas neste processo à vivência da paixão. Quem já se apaixonou, saberá muito bem ao que me refiro. As palpitações, as insónias, o desejo constante, as odes pior ou melhor conseguidas que se dedicam pessoalmente, em viva voz, por carta (já em desuso), por e-mail, ou, com os “kapas” (tão actuais) abreviantes, por sms, à pessoa (ídolo, anjo salvador, demónio tentador, ...) dilecta, fazem-nos crer que é disto que o amor se trata ou que, mesmo não sendo só isto o amor, é disto precisamente que precisamos para que possamos viver a nossa vida de forma intensa, digna desse nome e de modo apetecível.
A paixão faz-nos sentir invencíveis apesar de desmesuradamente frágeis. Acreditamos ter vestido o fato mágico que nos transforma em super homens ou super mulheres, sem que logremos perceber que temos dentro de nós, nesse momento, a quantidade de
kriptonite necessária para que nos desfaçamos em lágrimas, desgostos e humanidades, até ficarmos reduzidos ao que somos, uns meros aprendizes, apenas por uma palavra mais amarga, por um atraso no encontro marcado, por um mero sms sem resposta. E a relação erótica até pode ser deplorável e a amizade, analisadas as coisas com frieza, absolutamente inexistente, até porque em sã consciência nunca apresentaríamos aquele(a) boçal, ao nosso mais restrito grupo de amigos e familiares. Mas que importa? Estamos apaixonados! E depois de se experimentar o agri-doce da paixão, como é difícil contentarmo-nos com a monotonia do amor. Queremos lá bem saber se aquela pessoa com quem ontem até demos a queca do século, é precisamente a pessoa a quem recorremos sempre, a única que não temos dúvidas de que gosta de nós pelo que somos, a que nos lambe as feridas quando elas nos ardem. Estamos ávidos de engolir o super amendoim que o super pateta tem no chapéu azul, pôr as lentes de contacto cor de rosa e sentir nas veias a
trip da paixão. Talvez o Bergman falasse apenas para as pessoas da sua idade ou para aquelas que apesar de mais jovens, já experienciaram vezes suficientes as inconsequências da paixão. Seja como for, não se trata de uma regra. Ou, concedendo, sendo uma regra, esqueceu-se de referir as suas excepções.
É duro quando somos jovens ou quando teimamos em prolongar a juventude para lá do decoro, ouvir falar na pessoa que gostaríamos de ter ao nosso lado aos setenta anos. Quando o erotismo está reduzido à intensidade de um olhar cúmplice, cheio de amor complacente, admirando as rugas e as imperfeições do corpo que ainda acariciamos ao de leve quando a noite nos pesa. É desta completude que Saraband nos fala, ousando comparar o amor real e pardacento ao onirismo vivaz da paixão. Pois é, meu caro Bergman, suspeito que estou consigo mas que estamos quase a sós.