quinta-feira, agosto 17, 2006

a morte é simplória

Porque acreditava na assimetria da alma, olhou perplexa para os quatro pedaços iguais que tinha na mão, quebrados e quase requebrados como se derretidos pelo muito calor. Acontecera-lhe por acaso ficar com a alma nas mãos, sem que ao feito precedessem as trombetas ribombantes do inferno ou os miados de harpas e liras mais próprios do céu. Gémeos entre si, os quatro pedaços, deixavam adivinhar uma perfeição que não supusera. Mas agora que bailava sobre o seu corpo e conhecia o mais escondido segredo da vida percebia a linearidade do tempo e do percurso. E, como acontece quando muito ansiamos e quase nos desgostamos quando a coisa finalmente se dá, já gasta pelo gozo da antecipação, dera por si a criticar tanta simplicidade. Afinal uma vida inteira a rumar a um fim mereceria porventura um epílogo mais exuberante. Se não era a alma o que lhe sobrava etereamente do corpo mas antes o corpo que suavemente dela se apartava, restavam-lhe os quatro pedaços da dita para ofertar. Este era o mistério da eternidade e do prolongamento. Apeteceu-lhe multiplicar os pedaços para deixar semente em mais memórias, num raciocínio lógico muito humano. Espreitando o seu clone envelhecido na caixa de madeira com rendas, achou soberbo que fosse a falsa matéria o que se despojaria na terra para saciar a fome dos bichos e justificar as perdidas vaidades. Afinal, neste limbo paralelo, guardava-se o corpo no seu auge mais estético. Enxertou a gosto no desgosto dos lacrimosos amigos e familiares os pedaços da sua alma, como garantia de perpetuação dessoutra que fora. Posto isto, lá foi ela, sem alma nem credo, corpinho escorreito desdenhando dos medos e das fantasias que se albergavam do lado de lá daquela porta. Meu Deus, que simplória é afinal a morte!

5 Comments:

Blogger Mar said...

Bem vinda.
Soberba...como sempre. :-)

10:08 da manhã  
Blogger Bastet said...

Olá Mar! Fui a banhos oceanicos (viste-me?) e cá estou eu de novo com saudades dos amigos mas nenhumas, nenhumas do trabalho :(

10:21 da manhã  
Blogger batista filho said...

"Apeteceu-lhe multiplicar os pedaços para deixar semente em mais memórias, num raciocínio lógico muito humano."

"Posto isto, lá foi ela, sem alma nem credo, corpinho escorreito desdenhando dos medos e das fantasias que se albergavam do lado de lá daquela porta. Meu Deus, que simplória é afinal a morte!"

O post, no todo, mui bem escrito, espetacular, mesmo!

Bastet, parte de mim fica aqui, nesse espaço, contigo, porque alguns laços que criamos são mais fortes que outros.

Um beijo, amiga.

3:55 da manhã  
Blogger Mar said...

POr lá não te vi, mas vim aqui algumas vezes ver se te via. ;-)

6:12 da tarde  
Blogger Bastet said...

Batista como é possível ter saudade de quem não se conhece? Mas eu conheço as tuas palavras e que força t~em os laços que as palavras criam! Um abraço amigo!

Obrigada Mar por passares aqui! Verdade é que eu assim que cheguei me fui refrescar nas salsas ondas do teu blog! Um beijo :)*

11:05 da manhã  

Enviar um comentário

<< Home