a morte é simplória
Porque acreditava na assimetria da alma, olhou perplexa para os quatro pedaços iguais que tinha na mão, quebrados e quase requebrados como se derretidos pelo muito calor. Acontecera-lhe por acaso ficar com a alma nas mãos, sem que ao feito precedessem as trombetas ribombantes do inferno ou os miados de harpas e liras mais próprios do céu. Gémeos entre si, os quatro pedaços, deixavam adivinhar uma perfeição que não supusera. Mas agora que bailava sobre o seu corpo e conhecia o mais escondido segredo da vida percebia a linearidade do tempo e do percurso. E, como acontece quando muito ansiamos e quase nos desgostamos quando a coisa finalmente se dá, já gasta pelo gozo da antecipação, dera por si a criticar tanta simplicidade. Afinal uma vida inteira a rumar a um fim mereceria porventura um epílogo mais exuberante. Se não era a alma o que lhe sobrava etereamente do corpo mas antes o corpo que suavemente dela se apartava, restavam-lhe os quatro pedaços da dita para ofertar. Este era o mistério da eternidade e do prolongamento. Apeteceu-lhe multiplicar os pedaços para deixar semente em mais memórias, num raciocínio lógico muito humano. Espreitando o seu clone envelhecido na caixa de madeira com rendas, achou soberbo que fosse a falsa matéria o que se despojaria na terra para saciar a fome dos bichos e justificar as perdidas vaidades. Afinal, neste limbo paralelo, guardava-se o corpo no seu auge mais estético. Enxertou a gosto no desgosto dos lacrimosos amigos e familiares os pedaços da sua alma, como garantia de perpetuação dessoutra que fora. Posto isto, lá foi ela, sem alma nem credo, corpinho escorreito desdenhando dos medos e das fantasias que se albergavam do lado de lá daquela porta. Meu Deus, que simplória é afinal a morte!
5 Comments:
Bem vinda.
Soberba...como sempre. :-)
Olá Mar! Fui a banhos oceanicos (viste-me?) e cá estou eu de novo com saudades dos amigos mas nenhumas, nenhumas do trabalho :(
"Apeteceu-lhe multiplicar os pedaços para deixar semente em mais memórias, num raciocínio lógico muito humano."
"Posto isto, lá foi ela, sem alma nem credo, corpinho escorreito desdenhando dos medos e das fantasias que se albergavam do lado de lá daquela porta. Meu Deus, que simplória é afinal a morte!"
O post, no todo, mui bem escrito, espetacular, mesmo!
Bastet, parte de mim fica aqui, nesse espaço, contigo, porque alguns laços que criamos são mais fortes que outros.
Um beijo, amiga.
POr lá não te vi, mas vim aqui algumas vezes ver se te via. ;-)
Batista como é possível ter saudade de quem não se conhece? Mas eu conheço as tuas palavras e que força t~em os laços que as palavras criam! Um abraço amigo!
Obrigada Mar por passares aqui! Verdade é que eu assim que cheguei me fui refrescar nas salsas ondas do teu blog! Um beijo :)*
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