segunda-feira, agosto 28, 2006

carta a Bergman

Uma relação para que resulte deve aliar duas componentes: uma grande amizade e um erotismo inabalável - isto é dito, mais ou menos desta forma, no já considerado como último filme do Bergman - Saraband. E assim dito, quase parece inquestionável. Um processo químico no qual, adicionando em doses correctas aqueles dois elementos se obtém, sem surpresas, o resultado esperado.
Pensei em escrever a este fabuloso cineasta, expondo-lhe as minhas dúvidas, para não dizer as minhas certezas. Sendo optimista, e acreditando que a carta lhe chegaria às mãos, talvez Saraband deixasse de ser o seu último filme e Bergman viesse de novo à cena, num acto de contricção, explicar que ao cabo e ao resto pode não ser bem assim.
A amizade e o sexo são, e aqui talvez inquestionavelmente, os dois melhores e maiores factores de aproximação entre dois seres humanos, mas nem pela sua junção podemos garantir qualquer sucesso duradouro. Primeiro porque, apesar de podermos ter a consciência de que nutrimos uma enorme amizade por alguém e de mantermos com essa pessoa uma relação erótica sublime, o medo, a imaturidade, a insensatez e/ou uma ambição emocional desmedida, podem sempre levar-nos a achar que falta mais um não sei bem o quê, para que aceitemos que o amor se instale de forma serena em nós. Estou convicta em atribuir culpas neste processo à vivência da paixão. Quem já se apaixonou, saberá muito bem ao que me refiro. As palpitações, as insónias, o desejo constante, as odes pior ou melhor conseguidas que se dedicam pessoalmente, em viva voz, por carta (já em desuso), por e-mail, ou, com os “kapas” (tão actuais) abreviantes, por sms, à pessoa (ídolo, anjo salvador, demónio tentador, ...) dilecta, fazem-nos crer que é disto que o amor se trata ou que, mesmo não sendo só isto o amor, é disto precisamente que precisamos para que possamos viver a nossa vida de forma intensa, digna desse nome e de modo apetecível.
A paixão faz-nos sentir invencíveis apesar de desmesuradamente frágeis. Acreditamos ter vestido o fato mágico que nos transforma em super homens ou super mulheres, sem que logremos perceber que temos dentro de nós, nesse momento, a quantidade de kriptonite necessária para que nos desfaçamos em lágrimas, desgostos e humanidades, até ficarmos reduzidos ao que somos, uns meros aprendizes, apenas por uma palavra mais amarga, por um atraso no encontro marcado, por um mero sms sem resposta. E a relação erótica até pode ser deplorável e a amizade, analisadas as coisas com frieza, absolutamente inexistente, até porque em sã consciência nunca apresentaríamos aquele(a) boçal, ao nosso mais restrito grupo de amigos e familiares. Mas que importa? Estamos apaixonados! E depois de se experimentar o agri-doce da paixão, como é difícil contentarmo-nos com a monotonia do amor. Queremos lá bem saber se aquela pessoa com quem ontem até demos a queca do século, é precisamente a pessoa a quem recorremos sempre, a única que não temos dúvidas de que gosta de nós pelo que somos, a que nos lambe as feridas quando elas nos ardem. Estamos ávidos de engolir o super amendoim que o super pateta tem no chapéu azul, pôr as lentes de contacto cor de rosa e sentir nas veias a trip da paixão. Talvez o Bergman falasse apenas para as pessoas da sua idade ou para aquelas que apesar de mais jovens, já experienciaram vezes suficientes as inconsequências da paixão. Seja como for, não se trata de uma regra. Ou, concedendo, sendo uma regra, esqueceu-se de referir as suas excepções.
É duro quando somos jovens ou quando teimamos em prolongar a juventude para lá do decoro, ouvir falar na pessoa que gostaríamos de ter ao nosso lado aos setenta anos. Quando o erotismo está reduzido à intensidade de um olhar cúmplice, cheio de amor complacente, admirando as rugas e as imperfeições do corpo que ainda acariciamos ao de leve quando a noite nos pesa. É desta completude que Saraband nos fala, ousando comparar o amor real e pardacento ao onirismo vivaz da paixão. Pois é, meu caro Bergman, suspeito que estou consigo mas que estamos quase a sós.

11 Comments:

Anonymous Anónimo said...

:-)))))))

*

7:58 da tarde  
Blogger admin said...

Não vi o Saraband a não ser agora pelas tuas palavras. Mas sou capaz de imaginar o Bergman, que há muitos anos me introduziu em temáticas inesperadas, a saber agora, outra vez, o que é o amor e a amizade e a paixão e o sexo, outra vez outra coisa diferente. Se bem me lembro, o que o marcava era precisamente o não saber. A perplexidade. A complexidade irredutível do humano. Ou o saber em cada vez, em cada momento, em cada idade, uma coisa diferente. E as suas deambulações, que me mostravam uma Suécia sombria, fria e perversa, eram ensaios acerca da verdade, o que quer que ela fosse. Várias vezes Bergman fez o último filme. Pelo menos foi o que me pareceu. Suponho que ainda estará a tempo de fazer outro com outra resposta, quando esta que tem agora já lhe não servir...

10:55 da tarde  
Blogger vague said...

ah, ganda bastet.

quase tenho vontade de não te conhecer para um dia te poder cumprimentar e conhecer como se fosse a 1ª vez e render-te homenagem por este texto (sim, pq isso faz-se a desconhecidos, não a pessoas com quem se tem uma relação familiar - será esse um dos paradoxos do amor?)

:)

a ambição emocional - olha q a expressão se não é vera, é bem 'trovata'

1:40 da manhã  
Blogger Bastet said...

SGC: ;)
Esperemos então Ikivuku! :)

Ora Vague podes sempre fingir que não me conheces e combinamos um primeiro encontro mas desta vez em Sintra, okay? :D

11:53 da manhã  
Blogger vague said...

vamos fingir de conta q não nos conhecemos e reiventar a nossa relação :)


leste o livro de Amos Oz? Disseste-me q não, qdo eu o troxe de tua casa!

3:29 da tarde  
Blogger Bastet said...

Ai Vague Maria, o que eu te disse foi que o tinha começado a ler logo (há um ano nas férias... era eu mais nova :)) e que o tinha retido para lhe reler algumas partes - o que nunca fiz :( Não achaste o Michael um pouco certinho demais? ;)

4:09 da tarde  
Blogger jp(JoanaPestana) said...

Embora bem disfarçados, conseguimos ser uns tantos, tipo mais que seis.
Menina, Aleluia à completude.

(Não consigo ir ter contigo, buáaaa!!
Anda tudo ensarilhado, Bigodes)

12:44 da manhã  
Blogger batista filho said...

quando não mais se conta/ pelas contas do tempo/ as rugas não importam./// enrugados mapas/ na pele inteira/ ... nas mãos/ igualmente mapas/ caminhos que se cruzam/ e se separam/ mãos que se tocam/ e ao se tocarem/ senhoras do tempo/ retomam a manhã primeira/ sem mais ocaso/ ... simples assim/ quando se juntam/ princípio e fim.

2:35 da tarde  
Blogger Bastet said...

É isso tudo meu amigo mas agora nas tuas belas palavras :)*

2:48 da tarde  
Blogger Aires Montenegro said...

SARABANDE: para mim, a da 5.ª Suite de BACH (a do meu querido violoncelo, que continuo a querer saber tocar... Vou trabalhando para isso, muito mesmo, mas sem muitos resultados possitivos...)
Depois veio ter comigo (ou eu fui ter com ela?) esta do Bergman: curioso, com esta compreendi finalmente a dificuldade dos encontros/desencontros que a de BACH me prenunciava...

3:21 da tarde  
Blogger Bastet said...

Aires: O único instrumento musical que já utilizei foi a voz (o piano da infãncia não merece já referência) mas ainda assim o suficiente para poder entender que quando percebemos o que mora no espírito do compositor torna-se mais fácil a execução. Adoro violoncelo. :)*

5:09 da tarde  

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