segunda-feira, janeiro 30, 2006
Tão imperceptível que não o sintas, que jures tê-lo quebrado, que o quebres, que o desmintas. Que jamais te asfixie, te prenda, te traga manietada, que seja apenas memória que leves, que esqueças ou que recordes. Cadeira de balouço no sotão, onde te sentes e recolhas, onde embales a dor, ganhes alento, ganhes forças. Jamais âncora pesada, ferrugenta, que te fundeie, arraste, te culpe ou atormente, que te atrase qualquer jornada, ao alto, ao fundo, ao largo... Não seja nunca o leme do teu barco, seja vento, ponto cardeal ou enseada.
sexta-feira, janeiro 27, 2006
publicidade enganosa
Cada vez há mais vacinas incluídas no calendário obrigatório de vacinação infantil. Supostamente saem "à pala". Trata-se todavia de publicidade enganosa o que, conforme disposto no artigo 11º do Código da Publicidade (Decreto-Lei n.º 61/97, de 25 de Março), constítui contra-ordenação susceptível de ser punida com coima, mediante auto de notícia ou denúncia remetidos ao Instituto do Consumidor com vista à instauração do respectivo processo pela Inspecção Geral das Actividades Económicas (vide artigos 34º, 37º e 38º do mesmo diploma legal). Ora, muitos pais já terão percebido, ou ao menos desconfiado, do acordo existente entre o Serviço Nacional de Saúde e os hipermercados... BCG e Tétano zero euros mas uma Bratz custa cerca de 40 euros, uma Barbie cerca de 30 euros, uma Witch ou uma Winkx cerca de 25 euros e todos nós bem sabemos como uma coisa é indissociável da outra...
sexta-feira, janeiro 20, 2006
a casa de Deidre
Deidre vive ao lado da loja das flores. Foi razão decisiva na escolha da sua casa. Já morara de fronte de um cemitério e apreciara a companhia sossegada dos silenciosos vizinhos mas quase se esquecera de si, perdida dos vivos e das conversas banais. Decidiu mudar no exacto dia em que reparou que fora tomada pela palidez do desinteresse, aquela que rouba as cores sadias da vontade. Vive agora com o cheiro das rosas e dos cravinhos e é muito cedo que abre as portadas ao frio para ver o camião chegar carregado de muitas cores. Todos os dias ganha de presente as flores esquecidas pela escolha dos demais e todos os dias as dispõe em jarras formando enfeites por tons. Deidre absorve o que a rodeia e como que se transforma no que vê. No demais não há facto nem história. Quando Ramond lhe mostrou a casa ela quase não a viu. As assoalhadas multiplicavam-se e desapareciam. Gostou da pedra e dos nichos e do amarelo forte da cozinha. Disse-lhe logo que sim e pagou três meses de renda num só gesto. Quando passava pelo corredor tentava lembrar-se onde dormira na véspera e adivinhava nas suas faces o tom dos lírios do quarto branco. Viajava de jarra em jarra pondo água e palavras nas pétalas. Se lhe perguntavam a morada concentrava-se na placa de azulejo que ladeava o primeiro portão da rua e lia um nome qualquer. Morava na casa das flores e usava brincos de princesa. Vivia do sopro do vento e na transparência dos vidros, na hora constante do vazio, intermédia hora das notícias.
Deidre sentia a azáfama das ruas e buscava nelas o burburinho com que enchia os ouvidos e o peito, para preencher os espaços mudos dos dias e não ser o fantasma de si própria. A sua vida era igual à dos outros, só que Deidre apercebia-se da volatilidade dos interesses e isto fizera dela diferente. Olhava o que queria com a certeza do sem sentido de qualquer desejo e da sua curta existência. Aprendera pois a não amar o que queria, até nada querer. Tomava a forma das flores e dos outros e era-lhes semelhante. Sabia que no momento em que não viesse o camião das flores, mudaria de casa. Indiferente às jarras e ao que ficava, como as flores sem raízes são indiferentes ao tempo. Largas rendas depois, Ramond ofereceu-lhe um vaso com terra e Deidre chorou de medo. Olhou o vaso e viu-lhe a âncora que se lhe prendia à alma. Ramond percebeu e enlaçou-lhe o corpo e disse-lhe que era agora. Deidre não sabia recusar a vida mas desejava a morte indolor. Quis fugir pela janela das rosas murchas e esconder-se noutra casa qualquer mas ninguém resiste à dor da existência quando por destino esta lhe é posta aos pés.
Deidre sentia a azáfama das ruas e buscava nelas o burburinho com que enchia os ouvidos e o peito, para preencher os espaços mudos dos dias e não ser o fantasma de si própria. A sua vida era igual à dos outros, só que Deidre apercebia-se da volatilidade dos interesses e isto fizera dela diferente. Olhava o que queria com a certeza do sem sentido de qualquer desejo e da sua curta existência. Aprendera pois a não amar o que queria, até nada querer. Tomava a forma das flores e dos outros e era-lhes semelhante. Sabia que no momento em que não viesse o camião das flores, mudaria de casa. Indiferente às jarras e ao que ficava, como as flores sem raízes são indiferentes ao tempo. Largas rendas depois, Ramond ofereceu-lhe um vaso com terra e Deidre chorou de medo. Olhou o vaso e viu-lhe a âncora que se lhe prendia à alma. Ramond percebeu e enlaçou-lhe o corpo e disse-lhe que era agora. Deidre não sabia recusar a vida mas desejava a morte indolor. Quis fugir pela janela das rosas murchas e esconder-se noutra casa qualquer mas ninguém resiste à dor da existência quando por destino esta lhe é posta aos pés.
quinta-feira, janeiro 19, 2006
quarta-feira, janeiro 18, 2006
a borracha do mar
Desafio de mais uma imagem que pede palavras do Revelações:
As crianças desenham o futuro na areia das praias, onde nós já desenhamos o passado. A areia é a tela do tempo que o mar limpa e renova de branco, indiferente a quem lhe põe as mãos ou os dedos, em histórias ou desenhos mais ou menos abstractos. E não logremos ler-lhe amanhã o que escrevemos ontem, porque é sensata a borracha das águas que tudo leva. Como é sensato não lermos nas crianças o que não fomos. Esta é a lição do presente. Do único tempo que temos para desenharmos a vida. Esta é a lição do velho à criança que lhe pede histórias antigas. As verdadeiras histórias repetem-se e apagam-se para que possam se repetidas. Não há datas que se ponham nas histórias verdadeiras já que são intemporais. É a presença das mesmas escarpas que prova o que o digo. A secularidade do mar único que atesta da relatividade dos múltiplos planos que fazemos. Como a areia está para as crianças estão os velhos para o mar. É circular a existência. Pega-se no velho e vê-se a criança. Olha-se o mar e percebe-se porque ele nos apaga os fragmentos. E quando deitados lado a lado, o tempo que é e o tempo que foi, há um só tempo. Um só momento de verdade que não adianta escrever já que eternamente se repete numa praia qualquer.
As crianças desenham o futuro na areia das praias, onde nós já desenhamos o passado. A areia é a tela do tempo que o mar limpa e renova de branco, indiferente a quem lhe põe as mãos ou os dedos, em histórias ou desenhos mais ou menos abstractos. E não logremos ler-lhe amanhã o que escrevemos ontem, porque é sensata a borracha das águas que tudo leva. Como é sensato não lermos nas crianças o que não fomos. Esta é a lição do presente. Do único tempo que temos para desenharmos a vida. Esta é a lição do velho à criança que lhe pede histórias antigas. As verdadeiras histórias repetem-se e apagam-se para que possam se repetidas. Não há datas que se ponham nas histórias verdadeiras já que são intemporais. É a presença das mesmas escarpas que prova o que o digo. A secularidade do mar único que atesta da relatividade dos múltiplos planos que fazemos. Como a areia está para as crianças estão os velhos para o mar. É circular a existência. Pega-se no velho e vê-se a criança. Olha-se o mar e percebe-se porque ele nos apaga os fragmentos. E quando deitados lado a lado, o tempo que é e o tempo que foi, há um só tempo. Um só momento de verdade que não adianta escrever já que eternamente se repete numa praia qualquer.
terça-feira, janeiro 17, 2006
aquela janela
Pudesse-me eu pôr-me àquela janela e espreitar o cheiro dos pinheiros que me vem com o vento. Pudesse eu percorrer todas as distâncias que me separam de mim e descobrir a força que me vem de vencer a mudança. Pudesse essa força transformar em estrada larga o percurso sinuoso e deixar-me depois descansada a ver a vida crescer ao meu redor. Pudesse o que quero ser o que realmente posso e projectar esta imensidão de espaço numa qualquer varanda. E que todos os passos fossem pequenos passos e que não fosse o meu desejo mais amplo que a minha realidade. Pudesses tu entender o que digo e que a tua mão me fizesse ascender a todos os telhados pitorescos, onde desenho o esboço de um futuro quente, no lugar de uma lareira. Pudesse eu fazer-te entender a cantilena das árvores que me embala, até me ver dependurada no teu pescoço e adivinhar fragrâncias de campo num canteiro de cimento qualquer. Pudesse eu viver dentro de mim e a minha casa seria feita de janelas rasgadas ao infinito.
segunda-feira, janeiro 16, 2006
nikles batatóides
A força de uma emblemática expressão que, recorrendo à alegoria dos alimentícios tubérculos, tão bem traduz as deambulações infrutíferas de mais um fim de semana.
quinta-feira, janeiro 12, 2006
no fim das palavras
Vou contar-te a história dos últimos narradores. Os que tudo tinham para contar e ninguém a quem dizê-lo. Qual o valor das histórias que não são contadas? Ou o dos segredos que, não traindo o seu nome, não são contados? Esta é a história das últimas palavras e dos últimos homens. Os que se viram no mundo e já se viam sem ele. Os que se despediram das fés e das crenças, das flores, das pedras e dos bichos. E ouviram-se os gritos reverberar no silêncio que antecede o nada. As mãos abraçadas sobre o ventre que guardava os alimentos e os olhos postos em interrogação piedosa. Que fazer às lendas guardadas? Aos valentes de outrora que jamais se perpetuariam? O que ficava de nós? O que ficava de tudo? Onde se guarda o que deixa de existir? Como se a história fosse feita de caixas dentro de caixas, pequenas caixas, médias, grandes, enormes, até à última caixa. A que guardava todas as outras e que não tinha caixa maior onde coubesse. Caixas de histórias. Palavras arrumadas. Referências. E eu que posso contar-te a história dos últimos narradores, adivinho as perguntas - Qual o valor do que termina? Qual o sentido de tudo ter começado? Que férias longas nos deu o tempo para que depois não regressemos a casa? E tu que podes ouvir a história da história, adivinhas o medo. Da terra que não se pisa, do ar que não se respira, dos grandes que morrem no esquecimento, dos canalhas que ao nada passam com eles. Como se tudo fosse igual, sem valor ou escadas. Sem degraus. Sem caixas distintas. E nós que contamos e ouvimos a história dos últimos narradores antecipamos o fim. Gastamos as palavras para que morram usadas. Para que no silêncio, no último silêncio, reste a memória do som que um dia fizeram ao serem proferidas.
terça-feira, janeiro 10, 2006
guerra e paz
Tépidas águas, mornos desejos, travessia. Despem-se os dias na melancolia. Perdem-se as folhas, guardam-se as mãos e os beijos, relê-se o tempo nas chamas de uma lareira. Aposta-se que sim, quer-se que não. Dão-se os abraços, procuram-se confortos, aquecem-se os corpos sem juras, promessas ou paixão. Leva-se o rumo do norte ou do sul, ao sabor da sorte ou da tranquila oscilação das correntes. Que uma noite se partem. Que uma noite se quebram. Procuram-se reforços, motivos, desejos, acendalhas e remos. Procura-se na paz o tempo da guerra. Procura-se o lume, o abismo, o salto, as vestes quentes da loucura que trajamos com a bravura de um combate. Saramos as feridas, lambemos as mágoas. Trazemos o barco à enseada. Tépidas águas, mornos desejos. Tiramos a cota de malha. Despimos os dias na melancolia. Quer-se que sim, aposta-se que não. Sentamos as dores à fogueira. Renegamos a guerra, o amor, o desejo, as vagas. Que um dia se soltam. Que um dia nos levam. Tempos de paz. Anseios de guerra. Tempos de guerra. Anseios de paz.