Tenho esta beligerância nas palavras e um tom agreste na voz. As convenções, de tantas raízes, confundem-se com as convicções. Sinto a irritação crescer e contagiar-me como vírus perigoso em progressão geométrica. Calo-me. Talvez tarde demais.
O corpo já feito cadáver, ausente de vida. Enxameiam-se as pessoas ao seu redor. Os cortejos fúnebres acompanham o morto e não quem sofre a sua ausência. É em vida que se sente a dor e a saudade, contudo, é o corpo que não pode ir sozinho no carro preto com rendas e flores. Percebo as lágrimas de quem amou e o vazio que fica. Vazio que, sei-o, não se preenche com torrões de terra ou pedras inscritas. Porque estão lá os que antes não estavam? Porque se junta ao caixão quem não se junta no Natal? Porque se guardam urnas com cinzas? Que amor perdura por uma caixa de madeira com o pó de restos cremados? É difícil amar o invisível. O grande desafio que Deus terá perdido para as imagens e símbolos. "Que linda cerimónia"! O carro não pode parar na estação de serviço, para que quem conduz sacie a fome, beba um café, faça um xixi. As funções vitais ofendem quem jaz sem elas. Repara nos pormenores quem o sofrimento não tolda a percepção. Flores, muitas flores de cheiro enjoativo para quem não as recebeu pelo último aniversário.
Não há olhos postos no azul. Ninguém vê o céu. Todos veêm o preto. O luto pesado que enfeita e adelgaça as mulheres misteriosas por detrás dos óculos escuros. Reza-se por quem não foi à missa. É assim. Eu sei que é assim. E ainda assim, calo-me sempre tarde demais.