terça-feira, março 28, 2006
Estou em crer que as palavras me morreram. Ponho-as no branco e ficam brancas, mais pálidas que o meu desejo de fazer qualquer coisa acontecer. E porque elas vêm de mim, ou de parte de mim, nada em mim agora renasce. Sinto-as atrofiar em vocábulos minimalistas, grãos de pó. Ao pó a que também as palavras tornam com a morte. Em fragmentos de poeira, vejo-as voar mais alto que o impulso que lhes dava, quando tentava fazê-las subir aos meus tontos pensamentos, flamejando-as de amor e mágoa, para as servir depois em risos ou prantos. Estou certa que as palavras me morreram, porque conheço o berço de onde provinham titubeantes, aprendizes de falas e versos e que, quando lidas, me soavam a cantigas do meu mal ou bem dizer. Morreram-me as palavras e sinto-me despida sem elas, sem saber preencher os vagos espaços onde as encavalitava por prazer. Sou menos sem elas. Sou parte de mim apenas. Amputada da fome que lhes tinha, apodrecem-me bolorentas como se lhes fosse indiferente. Estou ainda aqui dedilhando sem alegria as que me restam. Sentindo a falta do turbilhão que antes me queimava de avidez e febre, não reconheço a minha escrita. É-me exterior, rigorosa no medo do intérprete que sem alma ou jeito, acompanha em marteladas de piano, a missa provinciana num qualquer Domingo. Este é o testemunho do meu luto.
segunda-feira, março 27, 2006
referência
Nestes tempos que para mim têm sido de alguma apatia, houve o milagre de umas palavras que me fizeram chorar. Aqui.
sexta-feira, março 24, 2006
terça-feira, março 21, 2006
quebra-cabeças
Nos intervalos de um quebra-cabeças teorizamos o caminho para a solução porque sabemos que, apesar da sua aparente impossibilidade, há uma saída prometida. Mas teorizemos agora que a única saída ou solução para um hipotético quebra-cabeças, seja apenas a cabeça partida. E já ela desconfiava que assim era. Há um estranho apelo nas dificuldades que outros superaram e que nós queremos igualmente superar e um apelo maior ainda, irresistível, no que nunca ninguém antes conseguiu ultrapassar e nós, soberba e ingenuamente, acreditamos poder resolver. É neste confronto entre o que somos e o que achamos que somos, entre as nossas particularidades e traços supostamente distintivos, que reside o verdadeiro vício de um quebra-cabeças. E ela sabia que assim era. Vamos comentando a espaços, com quem faça o favor de nos ouvir, algumas banalidades sobre o quociente da dificuldade e o da nossa resistência ou teimosia. Erro fatal, também porque subsequente aos outros erros já referidos, é subestimar a dor de uma cabeça quebrada como única forma de auto-estímulo para a permanência na busca de uma solução que não existe. O que nos leva a supor que o estímulo possa estar no desencanto ainda que neguemos este facto como processo racional para a aceitação do caminho. E ela tinha a cabeça mal convalescida das últimas dores. Ou a verdadeira dificuldade está no orgulho que, a par com o desencanto, também nos vicia? - O aditivo não pode estar na solução porque esta não existe - Negamos que não haja solução. Fingimos acreditar que podemos ser capazes. Vociferamos que nos conseguimos genializar, transcender. Ela sabia do sofrimento. Conhecia a dor. Gostamos nós das vielas que nos transportam à morte enquanto sonhamos com o pote de ouro no fim do arco-íris? Qual é o desafio quando não há escolha? O desafio está em fugir ao caminho...
sexta-feira, março 17, 2006
arggghhh!!!
Hoje as notas gelam no bafo do nevoeiro, colcheias redondas de água que se estatelam em pequenas fusas de arrepios no meu pescoço, percorrendo a pauta de uma coluna dobrada ao frio, até serem pausas de silêncio na minha cintura molhada, anunciando o desconforto de um dia que se prolonga para lá da minha estreita e estrita vontade. E esta música da chuva far-se-ia em cravo, que o seu cinzento é medievo, de uma humidade antiga de claustros despidos de gente, de passos solitários que ressoam num soalho de pedra gasta. Recolho-me destes sons e deixo que fiquem lá fora, mais longe do corpo que do pensamento, que se entrega a esta parda melancolia, amarfanhado. Deixo que um café traga instantes de bolero, levando aos meus pés breves e semi-breves redondas de algum ânimo, e que um cigarro queime o seu incenso, avivando pelas narinas outras mais doces e barrocas memórias. São fugas contra o tempo, excertos de enxerto voluntário, secas e quentes cataratas neste deserto de água em tanto lado.
terça-feira, março 14, 2006
és então
Dir-se-ia que és a minha casa, por mais caminhos inóspitos que trilhe, porque conheço a certeza do teu colo morno e o abraço de conforto em que me escondo, quando mais frágil ao teu lado adormeço sossegada, aspirando suavemente o cheiro do teu pescoço, és então quase completo.
segunda-feira, março 06, 2006
sexta-feira, março 03, 2006
contigo
Tenho em mim uma janela cerrada, aos que se passeiam pelo meu corpo pelo meu prazer, como quem passa correndo por uma estrada qualquer e não pernoitando em nenhuma cidade, passam e partem sem lograr conhecer.
São veraneantes de Inverno que atropelam estações, dando em sopros calor onde o frio me queima, dando beijos de amor onde existe o desejo, dando às mãos o rigor de uma certa passagem e por isso crendo ser-lhes devida, uma qualquer lembrança ou homenagem.
Tenho dentro de mim esta minha janela, portadas de vento com vidro cristal, que é tão transparente o que nela se cerra, que é frágil, temente, o que nela se guarda, escondido dos olhos de quem por mim passa.
Mas quando à noite outra noite vier, sejas tu que me tragas a manhã seguinte, declaro o estio a este meu corpo e que janela haverá que não se abra contigo?
São veraneantes de Inverno que atropelam estações, dando em sopros calor onde o frio me queima, dando beijos de amor onde existe o desejo, dando às mãos o rigor de uma certa passagem e por isso crendo ser-lhes devida, uma qualquer lembrança ou homenagem.
Tenho dentro de mim esta minha janela, portadas de vento com vidro cristal, que é tão transparente o que nela se cerra, que é frágil, temente, o que nela se guarda, escondido dos olhos de quem por mim passa.
Mas quando à noite outra noite vier, sejas tu que me tragas a manhã seguinte, declaro o estio a este meu corpo e que janela haverá que não se abra contigo?
quinta-feira, março 02, 2006
as pontinhas
Como não gosto muito de ir ao cabeleireiro, sou atenta aos sinais que demonstram de forma inequívoca que é tempo de lá voltar. Refira-se que não gosto do meu cabelo e que ele é o responsável por alguns traumas de infância e adolescência. Comparações com caniches, cães de água, ovelhas e outros animais de pelugem crespa, acompanharam o meu crescimento, com a desvantagem de estes animais terem por norma uma abundância capilar que a mim, infelizmente, não me caracteriza. Transporto pois - dizia- os meus caracóis às mãos de profissionais quando as pessoas que me rodeiam começam por se referir ao meu cabelo como "isso". Sendo mais clara: Não achas que é altura de cortares isso?; Não consegues pentear isso de outra maneira?.
E quando vou, como ontem fui, vou sempre apreensiva. Procuro todavia pensar que pior será difícil e que, ao menos, sempre mudo um pouco. O problema prende-se sempre com o conceito de "pouco" e com a compreensão verbal das profissionais em questão. A verdade é que as cabeleireiras detêm nas mãos e na tesoura um grande poder e são donas de uma tendência inata para a interpretação extensiva dos conceitos mais básicos de medidas. "Pouco" nunca é pouco. "Pontas" podem ser uma longa extensão capilar que, no cúmulo, termina na raiz. Ora, a senhora em quem, ingenuamente, confiei ontem, é das mais arrojadas que tive oportunidade de conhecer. Recordo-me perfeitamente de lhe ter dito de forma aparentemente explícita que pretendia só cortar as pontinhas (e dei ênfase ao diminutivo) e talvez dar um tom diferente ao cabelo... Asneira! Coloquei-lhe demasiada liberdade entre mãos... Apercebi-me de que algo não estaria a correr conforme o previsto quando, pelo espelho, vi esboçar-se-lhe um estranho, quase maléfico, sorriso.
Levantei-me a custo da cadeira e encarei com coragem o olhar crítico da minha filha e as suas observações sempre corrosivas que, só por pudor, não transcrevo. Aguentei ainda as meias palavras com que fui recebida por quem era suposto animar-me. Contudo, a essência da verdade, lê-mo-la sempre "à contrario" na boca dos nossos inimigos. Tenho que me render à evidência. Hoje fui recebida pelas funcionárias que de mim hierarquicamente dependem com um ror de elogios, e isto é que eu já não aguento! Desta feita a coisa correu mesmo mal!
E quando vou, como ontem fui, vou sempre apreensiva. Procuro todavia pensar que pior será difícil e que, ao menos, sempre mudo um pouco. O problema prende-se sempre com o conceito de "pouco" e com a compreensão verbal das profissionais em questão. A verdade é que as cabeleireiras detêm nas mãos e na tesoura um grande poder e são donas de uma tendência inata para a interpretação extensiva dos conceitos mais básicos de medidas. "Pouco" nunca é pouco. "Pontas" podem ser uma longa extensão capilar que, no cúmulo, termina na raiz. Ora, a senhora em quem, ingenuamente, confiei ontem, é das mais arrojadas que tive oportunidade de conhecer. Recordo-me perfeitamente de lhe ter dito de forma aparentemente explícita que pretendia só cortar as pontinhas (e dei ênfase ao diminutivo) e talvez dar um tom diferente ao cabelo... Asneira! Coloquei-lhe demasiada liberdade entre mãos... Apercebi-me de que algo não estaria a correr conforme o previsto quando, pelo espelho, vi esboçar-se-lhe um estranho, quase maléfico, sorriso.
Levantei-me a custo da cadeira e encarei com coragem o olhar crítico da minha filha e as suas observações sempre corrosivas que, só por pudor, não transcrevo. Aguentei ainda as meias palavras com que fui recebida por quem era suposto animar-me. Contudo, a essência da verdade, lê-mo-la sempre "à contrario" na boca dos nossos inimigos. Tenho que me render à evidência. Hoje fui recebida pelas funcionárias que de mim hierarquicamente dependem com um ror de elogios, e isto é que eu já não aguento! Desta feita a coisa correu mesmo mal!
quarta-feira, março 01, 2006
na conquista de uma fugaz liberdade
Guardou os chinelos e saíu pela janela. A liberdade conquista-se de pés nús e de forma arrojada. Trepou o portão e pisou a calçada. Rasgou a roupa e os joelhos. Era um preço que tinha de pagar. Andou de costas e de olhos fechados porque nem sempre a liberdade está à nossa frente ou se destapa nua aos nossos sentidos, depois de braços abertos e queixo erguido, gritou bem alto os vapores de um hino de conquista mas só repousou satisfeita quando sentiu novamente nos pés a felpa familiar e aconchegada das suas pantufas.