regresso
Pela janela entrou a manhã como se fosse habitual. Bom dia!, bom dia! - e era um dia bom para começar. Panela ao lume, ventre na pedra mármore e pés agrilhoados em chinelas de tiras. Hoje, hoje é o dia de mudar. Turras de gatos e arfar de cães; malgas de comida, tigelas de água. Pegadas de pó no soalho fresco. Lixívias e detergentes, panos e baldes. Saudades de uma avó morta que repetia estes gestos num quintal de calçada portuguesa. Talvez o seu espírito more nesta bata antiga e no som do amolador de facas. Ou nas ervas de cheiro que despontam do barro, escondendo a terra a que se agarram. E a mão perdida no grande bolso frontal, procurando o lencinho de pano às flores. E ela pequena, miúda, fazendo almoços para bonecas de trapo, escudada pelas gerações de mulheres que lentamente fizeram a revolução. Em quintais semelhantes, com rotinas desprendidas e íntimas das sabedorias do tempo. Agora fazia-se a hora ao bater dos ponteiros rápidos dos segundos. As manhãs já não eram como antes. Quando a saudade raspa os sentidos desta forma áspera, só a perdida segurança de uma infância latente nos segura. Nos identifica. Então é tempo de mudar. Agarrou a manhã como se fosse habitual. Tirou a panela do lume, a barriga da bancada e de pés soltos entrou na máquina do tempo.