segunda-feira, janeiro 29, 2007

quem tudo quer perder

Poder-se-ia contentar com o normal desenrolar dos dias que, sendo de feição, eram mais sustentáveis que um qualquer futuro mais ou menos definido. Esta lassidão, tão conforme às suas mais íntimas insuficiências, desgostava-a todavia. Ou talvez não fosse bem desgostar-lhe, mas antes o medo de se acomodar ao incerto. Porque lhe faltava o pulsar do verdadeiro conhecimento, faltava-lhe um genuíno interesse pela vida. Calhar-lhe-ia por bem resolvê-la, para que deixasse de constituir um problema.
Senhora de aparentes contrastes, catalogadora assertiva dos alheios comportamentos, redutora dos heróis à categoria de risíveis seres humanos, não se lhe adivinharia no cinismo tamanha e crónica apatia. E no entanto, assim o era. Buscando no outro o que lhe faltava e emprestando o que não tinha, ia intimamente exigindo promessas para forjar de esperanças as suas lacunas.
O mundo era de gente especializada. Especialistas vários. Gente que se ocupava dos detalhes com detalhe, que punha esmero e dava sentido ao que lhe parecia infinitamente aborrecido.
Pela rama, a talhe de foice, analisava o destino das coisas, rematando com esgares de quem sabe mais que o que diz, impressionando com estas reticências as incautas audiências. Porque para tudo era preciso um esforço adicional. Um mais não sei o quê que lhe tinha sido amputado do carácter. E isto, que era o mais irritante que conhecia de si própria, era a essência da sua verdade. Veja-se o que daqui se extrai: uma inegável adaptação às circunstâncias; um arrogante silêncio; um incómodo laxismo; um estuporado facilitismo; uma ansiedade constante entre o que queria merecer e o que julgava ter merecido. E só esta ansiedade, mais do que qualquer coragem, a impelia à descoberta. Conceda-se porventura num desconforto com a monotonia, quando as emoções já se esbatiam e a falta de alegria lhe trazia aos olhos algumas lágrimas de arrependimento. Mas o torpor era mais fácil. E até ao sofrimento é possível haver hábito quando a mudança requer um passo.
Agora, tão perto do que julgava querer, surpreendia-se com as irónicas coincidências do destino. Ninguém que lhe pegasse ao colo, ou que lhe trouxesse ao peito a chama ardente de uma vontade superior. Antes alguém que, como ela, se revolvia em revoltas com o vazio, o mesmo aflitivo desejo do nada, o mesmo imerecimento de tudo. Mas por ele desejava arrastar os pés em conjunto, nas semelhantes e curiosas afinidades. Jurava abismada este amor incompreensível, mas entre o que tinha de real pela primeira vez, precipitava-a o medo ao desejo de um rápido fim.

4 Comments:

Blogger NunoP said...

Olá
Estou a ver que tudo correu bem na transição. No meu caso verifiquei que algumas coisas desformataram, mas nada que não se arranje.
Continuação de bons posts...
Jocas

11:00 da manhã  
Blogger Barão d'Holbster said...

Olá
Estou a ver que tudo correu bem na transição. No meu caso verifiquei que algumas coisas desformataram, mas nada que não se arranje.
Continuação de bons posts...
Jocas

11:02 da manhã  
Blogger batista filho said...

buscar certezas, garantias... quando quase tudo é incerto, sem garantias...

um dia entre duas noites... uma noite comprimida entre dois dias... taí uma garantia... será?!

o texto instiga, dá oportunidades a muitas viagens. e isso é bom, pois nos tira do marasmo de uma leitura morna.

um beijo saudoso, amiga querida.

(e põe saudade nisso!!!)

4:39 da tarde  
Blogger Bastet said...

Barão, então também já és um google blogger :)


Saudades de ti também querido amigo Batista :)

3:08 da tarde  

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