terça-feira, junho 13, 2006

o amor é áspero

Deixei de temer as fatalidades quando percebi que o temor não as evita, sendo até menos eficaz do que a fé. Não ouso dizer que o medo é o contrário da fé (não vá esta alimentar-se exclusivamente daquele) mas que é, ao menos, o contrário do amor. Seja lá como for, o destino, as coincidências, a sorte, o azar, a mão de Deus, o escrever direito por tortas linhas, encarregam-se sobejas vezes de nos colocar perante o imponderável. Desta forma, num ápice, vemo-nos confrontados com a grotesca realidade - e não há nada de mais inverosímil. A realidade, ou numa das suas vertentes a verdade, deverá ser atenuada com a sensatez da ficção, da mentira se preferirmos, por forma a que seja consumível, inteligível para os outros. A verdade é tão nua que incandesce, choca, amedronta. Temos pois que a saber vestir. Reparem na dita crueldade das crianças que, imunes aos filtros sociais, têm uma ligação directa entre a verbalização e a percepção. A verdade é crua. Há que suavizá-la, torná-la mais apetecível. Passá-la pelo amaciador de lãs e costumes e servi-la mais aprazível, mais fofa, mais humana. A realidade é desumana. É o fruto das fatalidades divinas. Maná compatível com os infantis semideuses. Não queira o comum mortal aspirar à iguaria ou ver-se-á condenado a dizer adeus ao paraíso. Deixei de temer a verdade quando percebi que ela me enganava com a sua simplicidade. É mais fácil rendilharmos os factos. É assim que podemos contar aos outros o que se passa. Não há história sem magia, sem logro, sem fatalismo, sem mistério. A realidade é pouco misteriosa e por isso é ridícula. O paraíso é o lugar onde a ficção acontece. A verdade é o que nos esbofeteia no quotidiano mas que teimamos bordar a ponto cruz. E se o medo é o contrário do amor este haverá de ser verdade. Burlesco. Ingénuo. Brutalmente simples. Áspero. Real.

26 Comments:

Blogger Alcabrozes said...

Enxagua a realidade num alguidar com um niquinho de Presto! Como sabes, os glutões comem as nódoas...
E não rouba a cor...

4:10 da tarde  
Blogger Bastet said...

:) ora aqui está uma boa solução de lavagem para a realidade!

4:13 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Bastet,
Eu cá prefiro neoblanc gentil q n tira a cor....
*

10:48 da tarde  
Blogger fernando macedo said...

gostei deste post; a primeira, porque me lembra algo que considero do melhor que coloquei no meu blog; qualquer coisa assim: o medo é falta de companhia; também porque dizes mais e porque a questão da verdade e de como servir a verdade aos outros, de que modo e em que doses, é coisa que há muito me ocupa; penso que desde muito novo; e em particular já mais velho, quando há anos atrás li Ibsen. beijo

11:54 da tarde  
Blogger Barão d'Holbster said...

Até que enfim, alguém...
É isso mesmo. O amor não é o príncipe encantado correspondente aos nossos sonhos de infância.
O amor é desgaste, é esforço, é sempre a subir e no fim... compensação.
É por isso que vale a pena.
Até que enfim, alguém...

1:17 da manhã  
Blogger Lourenço Bray said...

Não há história sem magia, sem logro, sem fatalismo, sem mistério. A realidade é pouco misteriosa e por isso é ridícula.
Isto é uma espécide de lema para escrever boas histórias, mesmo para os grandes "realistas" como o meu Gogol, Dostoiévski ou Steinbeck.. :)
belíssimo texto, obrigado.

3:01 da tarde  
Blogger jp(JoanaPestana) said...

A realidade não é ridicula! A utopia é que sim. Que se fantasie para adocicar ainda papo. Enganar-me enquanto floreio o engano aos outros,é converter-me ao estado vegetativo, da rama fresca e pé bichado.
assim não...bigodes, assim não...

7:57 da tarde  
Blogger batista filho said...

"o amor é áspero..." mas também pode ser suave. Nada é uno, no mínimo, dual, não necessariamente antagônicos.
Instigante, o texto nos faz repensar conceitos, agita águas profundas do nosso ser.
Valeu, amiga: valeu mesmo!
Um abraço fraterno.

4:37 da manhã  
Blogger Maria do Rosário Sousa Fardilha said...

catrapisco-te este texto. porque sim.

beijo grande, princesa. e outro para ela, já sabes ;)

4:55 da manhã  
Blogger Bastet said...

A todos e a alguns mais em particular: Ler é isto mesmo, é tirar um pedaço que pode ser um pedaço diferente daquele que o autor escreveu. Por isso, agradam-me ad diversas interpretações que por aqui surgem. E não, pirata vermelho, este texto em nada abala os pontos nos és. JP, a realidade é por vezes tão inacreditável que se tu a fosses contar, nua e crua, ninguém te acreditava. Por isso digo que a realidade é ridícula e precisa de ser fantasiada. O amor é, e como concordo com o barão!, fruto da realidade e do trabalho diário, da entrega, muitas vezes difícil e áspera. Depois há a dose de fantasia que lhe colocamos para que, tal como a realidade, seja mais apetecível, sobretudo ao outro, se este outro ainda não tiver o estômago preparado para perceber que é na realidade comezinha que vivemos e que é esta a realidade que temos. O amor que temos. É desta realidade que gosto, é deste amor que gosto, porque já percebi que é esta a melhor utopia, o melhor sonho,a minha verdade .

2:58 da tarde  
Blogger jp(JoanaPestana) said...

continuo a disser-te minha querida, que a realidade não é ridicula ;-)
quem não acredita que se deite ao lado.
tb já te disse que ainda engulo e faço engolir, um bocado de fantasia,um genero de penso gástrico, a favor de vários estomagos mais fracos,como escreves.
mas não mascaro a realidade e tu sabes bigodes.

2:14 da tarde  
Blogger Bastet said...

Sei que sim amiga. Creio que também eu. Um beijo.

2:22 da tarde  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

"O Insustentável peso ou leveza da realidade" de Bastet (Edições Sol&Tude)!

Parabens está um texto digno de rivalizar com o Autor de "A Imortalidade"


CSD

3:57 da tarde  
Blogger vague said...

estás a dizer q o real não tem magia?
ou q a magia não é real?...


:)*

4:06 da tarde  
Blogger vague said...

Sabes? Eu acho mesmo que o medo é o contrário da fé!...

4:09 da tarde  
Blogger Bastet said...

As duas coisas Vague, as duas coisas.

4:09 da tarde  
Blogger Bastet said...

Obrigada Cláudia por esta visita e por me comentares, cof, cof e também pelo elogio :)*

4:11 da tarde  
Blogger Fausta Paixão said...

Deixa-te lá de ficções. Um gajo a roçar a aspereza da barba de dois dias pelo teu corpo não te agrada?
Há melhor realidade?
Ridículas? Só as que se perdem!
;)

7:32 da tarde  
Blogger Su said...

gostei de ler-te

não duvido a realidade é nua, crua , seca, curta, fria...tal como a vida.

entendo a necessidade desse fantasiar para adoçar o real

o medo existe.

jocas maradas

10:41 da manhã  
Blogger Bastet said...

Querida Fausta! :) essa realidade agrada-me mas se tiver que ficcionar a aspereza da barba não me importo.

Pois é Su o medo existe e não há como amaciá-lo para que se torne menos real :)*

4:50 da tarde  
Blogger aDesenhar said...

"o amor é áspero"!

também pode ser macio!

ou as duas.

depende como é servido.

:)

7:25 da tarde  
Blogger Nino said...

Talvez haja um limbo onde a realidade e a ficção se cruzem num ósculo que se adivinha preliminar de um grande orgasmo de esperança.

9:08 da tarde  
Blogger Boabdil said...

O amor só nao está em camara ardente ao lado de deus, porque nao pode morrer, como deus. O amor nunca existiu. é uma ficcao social.

Mas o texto está digno de uma deusa :-)

6:47 da tarde  
Blogger Bastet said...

Querido adesenhar: o amor não é servido, serve-se :)*

Ninno: Acredito nessa esperança, nesse orgasmo. Talvez por isso teime em me movimentar nesse limbo entre a minha própria realidade e ficção.

Alteza: se o amor não pode morrer é porque não é uma ficção. Ficcionemos os deuses mas não os sentimentos. Um beijo.

3:45 da tarde  
Blogger A Tendinha said...

A verdade pode doer, pode ser cruel, mas é preferível uma má verdade a uma boa mentira. Amaciar... sim, amaciar não faz mal, torna a verdade mais facil (menos difícil?) de suportar, por vezes. Mas a verdade, sempre a verdade.
Beijinhos e um atchim ;)

4:42 da tarde  
Blogger Bastet said...

Ai Noite, que dizer da verdade do branco que pela noite é prata e ao sol é de ouro? amaciemos os nossos sentdos...
Atchim!

11:28 da tarde  

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