sexta-feira, fevereiro 25, 2005

o milagre

Vieram de todos os lados para ver o milagre. Até da Charneca tinha vindo a Faustina carregada de oitenta e sete anos de idade e muitos outros de vida, que isto do tempo é mesmo relativo, deitadas as contas aos desperdícios e às apostas duplas. À cautela, vinham os sacos de merenda porque ver milagres é coisa imprevista, vinham banquetas desarmáveis para outro conforto e mantas de resguardo que pela noite é que se sente o frio. Uns quantos não tinham vindo propriamente, aqueles que de passagem só se deixaram ficar. E dizia-se que da terra vinha cheiro de profecia e que a cor do céu estava turva de mistério. Eram muitos, muitos mais que os poucos que também não haviam vindo porque já lá estavam, e eram esses mesmo, doutores da região, mestres do visionamento, que se deitavam em palavras de espanto e olhares de reverência.
Faustina aferrolhara-se na mudez que a idade não lhe deixava fazer perguntas à chegada. Já vira muito meio milagre para conversas atoleimadas de turista, muito céu fechado ou tremeluzente e até olfacto de cânfora e enxofre brotar da terra ou de gente, para saber medir a verdade. A verdade mede-se por comparação na balança da experiência. Pelos anos, vamos distribuindo as coisas em feixes de verdades e mentiras e pondo os molhos em dois celeiros. Ambos são importantes para o cultivo. E do molho da mentira se tira por vezes, pelo reverso, a verdade. Destes ensinamentos e mais filosofias, duplicara a Faustina a existência, ministrando com suavidade e método os estranhos e errantes discípulos pela escola dos caminhos. Pois era nessa roda de circunspectos que se adensavam as disputas, que o que se via havia de ser catalogado.
A arte de catalogar, porque ultrapassa a ciência, sabe-se redutora mas necessária. Necessário é o resumo após a largueza dos acontecimentos. É o resumo o que resta, o produto mastigado por quem tem melhores dentes e digestões mais profícuas. Ruminava-se portanto os pedaços de milagre e envolvências, degustando-se a magia e a beleza do encantamento até ao suspiro final do veredicto.
Porque não anoiteceu não se abafaram de mantas mas já seria madrugada quando o milagre fugiu. E foi na fuga que se certificou o milagre pela primeira palavra da Faustina. Que não há milagre eterno. O verdadeiro milagre deixa-se ver por vaidade em momentos e foge depois para de onde veio, para que se resguarde na lembrança. O que se transporta na lembrança é que é eterno e é só assim que o milagre se eterniza.

4 Comments:

Blogger Alcabrozes said...

Milagre, milagre, era chover no Alentejo!

o net pulha

12:28 da tarde  
Blogger Bastet said...

Esse milagre para mim é canja, sabes bem que bastaria eu marcar férias e ir passar uns dias ao Alentejo para que o milagre acontecesse... :(

3:09 da tarde  
Blogger Alcabrozes said...

LOL!

o net pulha

3:30 da tarde  
Blogger Bastet said...

Estou já a desenvolver contactos com os governos das regiões assoladas pelas secas a ver se rentabilizo a minha famosa azarina! Assim como assim sempre pode ser que tenha as férias pagas :)

3:37 da tarde  

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