quinta-feira, novembro 02, 2006

o funeral

E a pá do coveiro não magoa ninguém no seu alarido de metal. E os solavancos do caixão só doem aos vivos. Aos que olham a terra e não o céu. Deixando escapar o abraço ampliforme do vento e o anúncio da última corrida nas salvas de tiros. Prolongamos a dor dos que partem, recusamos-lhes um sorriso de cumplicidade, e a cor branca nos trajes anunciando a paz. Depois cai a chuva. Molha os corpos. Os vivos e os mortos. Abrem-se os chapéus e fecham-se os caixões. E a pá do coveiro não magoa ninguém no seu alarido de metal apressado. Pela chuva. O coveiro molhado. E o defunto húmido estremece no seu leito pesado. Descansa. Descansa em paz. Recusamos essa paz e um sorriso cúmplice. Basta olhar o céu na direcção das bátegas. E abrir os dentes. E sorrir. Sentir o abraço ampliforme do vento como se ouvem as salvas de tiros. A última corrida. A da morte. Vai. Descansa em paz. Depois fugir dali como quem foge da morte. E à morte não se foge nem interessa fugir. Ela que anda desgostosa por lhe recusarmos um sorriso, um sorriso cúmplice, a ela e aos que ela de bom grado acolhe na sua paz. A paz da última corrida quando já não há mais a correr. E nós com as lágrimas, o egoísmo e a saudade. Sem sentirmos o abraço ampliforme do vento. Como sentimos as salvas dos tiros e o alarido de metal da pá do coveiro já tão molhado. Pela chuva. E o caixão húmido a par com a terra para ali fica. O coveiro solitário. Indiferente. Como se sentisse o abraço dos mortos na curva do vento. Sem sorrir nem nada. E os sapatos a deixarem pegadas fugitivas. Ao portão e à morte. Como se interessasse fugir à morte. À morte não se foge. Nem ao abraço ampliforme do vento e dos mortos, nem à cumplicidade de um sorriso que esbarra na foice da ceifeira desgostosa. E nós com as lágrimas, o egoísmo e a saudade. Descansa em paz. Descansa em paz. E nós recusando o branco e o sorriso na direcção das bátegas. O alarido de metal. E os passos fugitivos magoados, egoístas, ao portão, ao coveiro, à morte.

12 Comments:

Blogger batista filho said...

Crenças, culturas... visões de vida, visões de morte... visões: d’uma realidade bonita, maravilhosa, crua e cruel, por vezes, mas sempre ilusória, transitória... contudo, muitos dizem e continuarão a dizer: - “é isso que conhecemos, que temos: agora... só o aqui e agora!” – inda assim, visões de vida, visões de morte -, verbalizadas das mais diferentes formas; algumas escritas com tal beleza que nos tocam a alma, ou nossa sensibilidade, pr’aqueles que n’alma não ousam crer. ## “Prolongamos a dor dos que partem, recusamos-lhes um sorriso de cumplicidade, e a cor branca nos trajes anunciando a paz.” ## Sim, podemos prolongar a dor dos que partem... partem... viajam... # ninguém parte de todo.// de todo/ ninguém fica.// quem parte/ se parte/ re-par-te/ leva e deixa/ pedaços/ ... leva e deixa saudade.//...// ## (Em tempo: não creio na morte.) // Deixo um abraço fraterno. //(ilhamutuns@zip.net)//batista

3:12 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Ainda não faz nem uma semana que "vi" a tua descrição tintim por tintim. E quis escrever sobre o assunto. Mas depois não fui capaz.
Como se deixa ir um puto de 15 anos, levado por uma qualquer curva de estrada? Como se lhe diz, vai?
Não sei se somos egoístas por não sabermos deixar ir com um sorriso, descansa em paz, aqueles que a morte leva, mas sei que a morte não é justa nos critérios com que os escolhe.

3:40 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

não sei de que funeral falas, nem sei se não falas de todos os rituais de despedida.
uns mais despedida que outros
outros mais sangrentos que outros
a dor, a que fica é apenas nossa, o coveiro já não quer saber, tem asas de chumbo que não sabem nem querem voar.
:/*

5:36 da tarde  
Blogger A Tendinha said...

Este é o texto que ando há um mês a tentar escrever e não consigo (bom, nunca conseguiria escrevê-lo tão bem! :) ).
Deixas-me publicá-lo?

A paulada ainda dói. Dói sempre. Nós é que lá vamos arranjando formas de lidar com essa dor. Aos poucos, que é para não nos esquecermos que a vida é mesmo isto...

Beijinhos, Bastet.

11:59 da tarde  
Blogger Bastet said...

Nem eu amigo! nem eu acredito na morte. Só na partida e na transformação. :)***

Hummm Mar! A justiça dos critérios parece-nos muitas vezes romba e obscena e no entanto... acredito que possa ser melhor partir em tempo. Qual o tempo? Não sei. Espero que Alguém Saiba. :)***

O coveiro JP talvez dê indiferença ao que é indiferente. Na verdade a sua pá já não magoa os mortos. Só o seu alarido de metal nos fere os ouvidos! :)***

Maria Noite: usa e abusa do que por aqui se põe. É teu. :)****

9:50 da manhã  
Blogger Elipse said...

... já cá estive várias vezes e sempre me fui sem palavras. Não é fácil...
Cada um de nós já sentiu o tinir da pá... por isso é que dói!

12:50 da tarde  
Blogger Bastet said...

E não há mesmo palavras para esse barulho! Um beijo Elipse.

2:53 da tarde  
Blogger A Tendinha said...

Obrigada linda! :)

4:07 da tarde  
Blogger Elipse said...

... mas ainda me esqueci de dizer que o texto dói porque nos faz estar lá, com todos os sons e ainda mais o peso dos silêncios; se o manejar da palavra nos fizesse alcançar a frieza do coveiro (a que nós supomos existir),não seríamos, ou antes, não serias capaz de nos levar ao sítio exacto da dor da despedida.

5:36 da tarde  
Blogger vague said...

andas tão séria, querida.
bom, de qq forma tudo isto faz parte.
um beijo.

7:18 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

A pá tiniu tantas vezes quantas as palavras que escreveste. O tinir não pára ecoa.

Deixo-te por momentos contigo; contigo me vou, dor.

9:18 da manhã  
Blogger Bastet said...

Sim, Erecteu, ecoa, para lá do tempo e do vento, ecoa dentro de nós, nas nossas cabeças. Um beijo para ti. :*

9:53 da manhã  

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