sexta-feira, abril 07, 2006

chá no deserto

Só já pela noite vinham os enxames de estrelas apagar o amarelo das almas cansadas do pó e atenuar o cheiro dos corpos sujos, suados e despidos da dignidade que oferece um banho e roupa fresca. Não há eco no vazio mas o silêncio propaga as vozes quase perto do além. O telefone do deserto. Ouvia os murmúrios de si mesma, como se do ventre lhe soprassem os fantasmas da digestão, e da mente, os estalidos das memórias mais profanas. Não há cor quando o dia se cerra sobre as dunas. O azul tuareg é negro, fechado e envolve no escuro as sombras e os vultos acocorados em pontos de fogo, luz e fumo. Os Somovares. Neles fumega o chá. Pequenas lamparinas de uma civilização perdida, pequenos sorvos de menta que aquecem o frio e uma esperança qualquer. Atravessara-se ao seu fim. Despojara-se das mulheres que fora, para agora não perceber quem era. Era só traços de areia e vento e deixara escorrer-se para lá dos limites do improvável. Nómada dos nómadas. Falava muda o que ninguém percebia. Era de um outro planeta qualquer da mesma Terra redonda, imensa e plana. Os outros tinham casa na linguagem e era vê-los acomodados nas conversas. Quisera imolar-se pelo fim da tarde quando deitada no chão esperara que o sol lhe iniciasse a combustão e a deixasse em cinzas. Um pouco de si chegaria à cidade e recuperaria os dias no ponto em que os deixara. Fora antes tomada pelo corpo de um homem, e soubera que o único oásis possível lhe escorria em gotas pelas pernas. Não há vestes que cubram o sem pudor e não há pudor na loucura do deserto, nem véus que guardem a sanidade ou que lembrem a vontade de caminhar. Só o torpor que distorce a realidade, amansando-a até à sobrevivência, ao movimento inaudível da respiração em compasso binário. Adormecera depois mas não dormira com ele, apenas com o seu cheiro e com o íntimo alarido de conceitos recorrentes. Nestas horas de espasmos nocturnos tudo lhe parecia mais real que nas vigílias diárias de olhos despertos. Nem sempre o presente é mais verdadeiro. Podemos ser enganados pelos sentidos exaustos e assim trocara os dias de miragens pela verdade sobejante do repouso. Estava descrente de outro resgate e por isso, quando ouviu as palavras acreditou estar morta, ou que fossem espectros desamordaçados do seu diafragma – well come back! Uma sombra de si estava de volta ou era talvez o milagre do chá.

9 Comments:

Blogger jp(JoanaPestana) said...

Minha querida, foi um renascer espantoso.
se te voltas a calar, arranco-te as palavras a ferros!
beijo

12:04 da manhã  
Blogger Elipse said...

Não há ecos no vazio. Mas o silêncio propaga as vozes...
Será assim?
Belo texto o do renascimento.

12:44 da tarde  
Blogger batista filho said...

Belíssimo texto a evocar imagens que a maioria de nós nunca verá... muito embora parte delas estejam presentes na vida de qualquer ser humano.
Conheces a força das palavras e tens sensibilidade para empregá-las.
Valeu, mesmo!!!
Um abraço fraterno.

4:24 da manhã  
Blogger Bastet said...

JP: antes as palavras que os bigodes! :)*

Elipse: É a experiência das noites que passei no deserto. As vozes propagam-se no silêncio e eles (tuaregs) chamam com graça a esse fenómeno "telefone do deserto". Ouve-se muito longe qualquer palavra de forma límpida, sem ecos.
Um beijo :)*

Querido Batista, obrigada pela força que me dás com os teus comentários meu amigo :)*

11:25 da manhã  
Blogger vague said...

Bastet, Bastet! Quem és tu?
:)
Um dia rapino-te as palavras e recolho-as num balde de cristal que em vez de pedras de gelo, transportará lava viva.
Sensuais de uma forma em que a sensualidade não é uma característica de uma parte mas um todo pintado com lápis de cor: o ser inteiro.

1:34 da tarde  
Blogger Bastet said...

Vague Maria, não precisas de rapinar as minhas... tens as tuas e bem sabes como gosto delas e da forma como olham para as direcções que não eu vejo nem pressinto. Um beijo grande para uma grande amiga.

2:25 da tarde  
Blogger Português desiludido said...

Excelente texto.bj
Pedro

4:17 da tarde  
Blogger Perola Granito said...

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7:09 da tarde  
Blogger vague said...

Bastet, rapino as tuas e guardo as minhas tb.
As coisas bonitas são de guardar - e quiçá, fazer presentes com elas.

E há lá coisa mais bela q um balde de gelo contendo o improvável?
;)

7:24 da tarde  

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